O QUE ELES ESCONDEM

sábado, 28 de outubro de 2017

Como seria de esperar, a maioria dos meios de comunicação portugueses, sempre tão atentos ao que se passa na Venezuela, não se referiu às eleições para governadores realizadas há pouco mais de uma semana. Não lhes interessa: foram validadas por todos os observadores internacionais e, dos 23 lugares, 18 foram conquistados pelos chavistas.
O regime bolivariano tem o apoio da maioria do povo venezuelano, mas é a oposição violenta quem conta com os favores dos “média” e do governo português: ontem, a RTP deu destaque, não ao facto de 4 dos 5 governadores da oposição terem aceitado o cargo perante a Assembleia Constituinte, mas à falta de medicamentos nas farmácias, fazendo coro com aqueles que perderam as eleições e o governo português declarou, pela boca do sô Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros, que apoia e aplaude as sanções contra o governo de Nicolás Maduro.
Que tudo isto aconteça não é de estranhar. De estranhar, sim, é o facto de quem se diz de esquerda, por ex., o BE ou próximos dele, acusar Maduro de “ditador” e o regime bolivariano de “ditadura”. Apenas duas explicações ocorrem: ou se informam unicamente pela imprensa da paróquia – nacional e internacional – ou democracia, para eles, resume-se a esta que conhecemos, a representativa, representativa dos que têm e sempre tiveram o poder.
O texto que se segue, traduzido do original, põe em evidência, através da comparação entre o que se passa na Catalunha e na Venezuela, as mentiras difundidas por quem, de uma forma ou outra, não está interessado numa verdadeira democracia – a democracia participativa.



SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE ESPANHA E VENEZUELA

Por Pascual Serrano*

O desenrolar dos acontecimentos na Catalunha está a gerar muitas discussões acerca da licitude, legitimidade ou legalidade de alguns actos tanto do governo catalão como do espanhol. Debate-se, por exemplo, se o governo espanhol actua de forma unilateral ou fá-lo com o aval dos juízes ou tribunais. Debate-se, também, se certas acções consideradas ilegais pelos juízes têm legitimidade quando são apoiadas por centenas de milhar de pessoas na rua. Tudo isso, como não podia deixar de ser, peneirado pelos meios de comunicação, que são o filtro com que desde há muito os cidadãos vêem a realidade. Estes elementos levam-me a ter em conta algumas semelhanças com a Venezuela, que vale a pena analisar, para, entre outras coisas, pôr em evidência o duplo critério de muitos. Contudo, existem alguns elementos diferentes que também devemos ter em conta. Vejamos.

Reivindicações e manifestações
Semelhanças:
Tanto na Venezuela como na Catalunha, milhares de manifestantes saíram à rua com exigências que não se ajustavam às legislações vigentes, nem contavam com apoio legislativo suficiente nos órgãos competentes. Na Venezuela, pediam a demissão do presidente e a suspensão da eleição da Assembleia Constituinte (convocada por Maduro com o aval da Constituição). Nenhuma dessas duas reivindicações contava com apoio legal. Na Catalunha, pedem que seja vinculante o referendo de 1 de Outubro, o qual tão-pouco se ajusta à legalidade espanhola.
Muitas das vozes que destacavam os milhares de manifestantes opositores na Venezuela e a necessidade de o governo Maduro negociar ou aceitar essas exigências, quando se trata de Espanha limitam-se a recordar a legalidade e a exigir aos manifestantes e políticos independentistas que abandonem a ilegalidade e aceitem a ordem constitucional. Esse era precisamente o argumento esgrimido pelos defensores do chavismo: a oposição não tinha ganhado as eleições presidenciais, pelo que deviam aceitar o presidente eleito, assim como as decisões que havia tomado no quadro das suas competências legais.
Diferenças:
Enquanto as manifestações catalãs sempre foram pacíficas, as venezuelanas eram extremamente violentas. Na Venezuela, os opositores assassinaram a tiro candidatos partidários do governo, queimaram vivos vários cidadãos chavistas e, num mesmo dia, ficaram feridos por arma de fogo 21 polícias. Apesar disso, os governantes espanhóis e a maioria dos meios de comunicação qualificavam o governo venezuelano de ditadura violenta e apoiavam a oposição. Em contrapartida, quando se tratava da Catalunha, defendiam a legalidade do governo espanhol, minimizando a violência vivida nas ruas.

Referendo
Semelhanças:
Tanto na Venezuela como na Catalunha celebraram-se dois referendos desautorizados pelos governos do país e legalmente não vinculantes. O da Venezuela foi a 16 de Julho e convocava-o a oposição para exigir a suspensão das eleições para uma Assembleia Constituinte, anunciadas pelo presidente Nicolás Maduro. Esse referendo não tinha aval na legislação venezuelana, nem contou com garantias democráticas, nem reconhecimento internacional. Apesar disso, foi qualificado pela maioria da imprensa espanhola de “histórica votação na consulta eleitoral” que “demonstrava o músculo da oposição”. O mesmo sucede com o referendo de 1 de Outubro, que não tinha inserção vinculante na legislação espanhola, nem contou com garantias democráticas, nem reconhecimento internacional. Por isso, a maioria dos meios de comunicação sempre acrescentaram o qualificativo de “ilegal” quando falavam do referendo, algo que não tinham feito com o da Venezuela, pois a maior crítica que lhe fizeram foi chamar-lhe “não oficial”. E, evidentemente, não qualificavam o referendo catalão de histórica votação ou músculo independentista, mas, pelo contrário, insistiam em que o resultado não era rigoroso nem fiável, nem permitia falar em nome da maioria do povo da Catalunha.
Diferenças:
Enquanto o referendo catalão se desenrolou com cargas policiais, detenções e centenas de feridos, na Venezuela as autoridades permitiram a votação e não houve nenhum tipo de repressão policial contra os votantes, que puderam participar sem qualquer problema.

Detenções
Semelhanças:
Tanto na Venezuela como na Catalunha alguns líderes acabaram na prisão. Em ambos os casos não foi o governo que os encarcerou, mas os juízes. Portanto, não é lícito que a quase unanimidade mediática afirme que Maduro mete na prisão políticos opositores, ignorando que se tratava de uma decisão judicial e, insista, agora em que os líderes catalães de Omnium e ANC foram presos por ordem judicial e não por decisão governamental. Não é, pois, aceitável que, na Venezuela, Leopoldo López e Antonio Ledezma sejam “presos políticos” e, em Espanha, Jordi Cuixat e Jordi Sánchez sejam “políticos presos”.
Diferenças:
Ainda que todos os presos sejam acusados de actuar contra a ordem legal (sedição para uns e instigação pública para o outro), as mobilizações que Leopoldo López agitou e liderou foram violentas, provocando a morte de 43 pessoas, centenas de feridos e numerosos danos materiais em infraestruturas públicas e privadas, sem que isso seja citado na imprensa quando nos informam da sua prisão. As manifestações que Jordi Cuixat e Jordi Sánchez lideraram não provocaram nem mortos nem feridos e os danos materiais limitaram-se a três carros da polícia.

Sistema Judicial
Semelhanças:
Em ambos os países o Procurador Geral e tribunais supremos são eleitos com critérios políticos. No caso do Procurador Geral elegem-no os governos. É evidente, portanto, que são correias de transmissão do governo e a sua missão é perseguir, em nome do Estado, o que se considera delito. Daí que, se o governo considera delito determinadas actuações, é lógico que o Procurador inicie o procedimento penal e determine a sansão, inclusivamente a prisão. Por isso, o Procurador Geral da Venezuela perseguia e solicitava a prisão para os opositores que entendia terem cometido algum delito e o Procurador espanhol fazia o mesmo contra os políticos ou líderes catalães.
Diferenças:
Todavia, a maioria dos meios de comunicação espanhóis não deixava de insistir em que a justiça venezuelana não era independente e que o governo assumia o controle da Procuradoria, como se em Espanha fosse diferente. Difundiram-se imagens do Procurador do caso Leopoldo López saindo da Venezuela para se instalar nos Estados Unidos e acusar o governo de tê-lo pressionado. Não deixava de ser a versão e a interpretação de uma só pessoa, sem mais provas, e, inclusivamente, tornava-se ilógico ter aceitado as pressões durante o processo e, só depois da sentença, sair do país para denunciar isso, quando teria bastado demitir-se do cargo e não aceitar fazer parte da situação. Em contrapartida, em Espanha, o Procurador Geral do Estado foi censurado pela maioria dos deputados do Parlamento espanhol. PSOE, Unidos Podemos, Ciudadanos, PNV, ERC e parte do Grupo Misto apoiaram uma moção que pedia a demissão do Procurador Geral pela sua parcialidade e “por incumprimento grave e reiterado das suas funções”.

Vejo-me na necessidade de esclarecer que não estou a tomar partido sobre a questão catalã, que não é objecto desta análise, e só me limito a expor duas situações e comprovar que, efectivamente, as comparações podem ser odiosas. Mas clarificadoras.


* Jornalista

O original deste texto está aqui

sábado, 7 de outubro de 2017


Brancos, ricos e perigosos

                                                              Por António Santos





Em jargão policial estado-unidense, «não há nada que permita ligar este tiroteio ao terrorismo» quer apenas dizer «não há provas de que o atirador fosse muçulmano». Arrumações casuísticas à parte, o ataque indiscriminado que este domingo fez 59 mortos e cinco centenas de feridos num concerto em Las Vegas entra para a tétrica contabilidade dos tiroteios americanos como um dos mais mortíferos da história moderna dos EUA, somente atrás do massacre de nativos em Wounded Knee (quase 300 mortos) e da repressão dos mineiros em greve de Blair (cerca de 100 mortos).
E, estranhamente, o que nesta chacina inspira terror é justamente o que, para a Casa Branca, exclui a classificação de terrorismo: a inquietante possibilidade de Stephen Paddock, um discreto milionário de 64 anos, ter acordado um dia e decidido fazer chover milhares de balas sobre uma multidão de desconhecidos. Só porque sim. Como James Holmes, o brilhante estudante de neurociências, numa sala de cinema, ou Adam Lanza, o tímido jovem de um subúrbio rico, numa escola primária.
Não, não estamos a falar de um ou dois «loucos» nem de, como se lhes convencionou chamar, «lobos solitários». O Congresso dos EUA define um «tiroteio em massa» como um ataque com arma de fogo contra pelo menos quatro pessoas seleccionadas aleatoriamente. Nos EUA houve 1515 ataques deste tipo nos últimos 1735 dias. Só em 2016, foram 383 tiroteios, mais do que um por dia, contra vítimas aleatórias, fazendo mais de 15 mil mortos num só ano. No que já vai de 2017, as estatísticas não são menos sombrias: 273 tiroteios em massa, quase todos sem razão aparente e levados a cabo por «lobos solitários». A questão é que 275 «lobos solitários» são uma alcateia.
Alcateia de humanos solitários
Segundo o site de informação Mother Jones, mais de metade dos autores dos tiroteios em massa encaixa-se numa estreita cofragem demográfica: homens, brancos e com rendimentos acima da média. Deveria Trump proibir a entrada nos EUA, à guisa do que tem feito com algumas nacionalidades, das pessoas que se encaixem neste molde? É claro que não. E ainda assim, este é um elemento central para um debate urgente sobre a saúde pública, o uso e porte de armas, a decadência cultural do capitalismo e a guerra imperialista.
Nos EUA, a guerra imperialista é uma constante ininterrupta há mais de 70 anos. Todas as gerações de estado-unidenses vivos têm uma relação pessoal ou familiar com a invasão e ocupação de outros países do mundo. Vietname, Coreia, Colômbia, Iraque, Afeganistão… a lista é infinitamente traumática e faz-se ao som de bombas, tiros, gritos e choros.
O preço psicológico da participação, prolongada e massiva, da sociedade estado-unidense neste dilatado crime de guerra foi uma patologia social, como que um «stress pós-traumático em massa» cujos sintomas mais visíveis são o culto da violência e a insensibilidade perante o sofrimento alheio. Juntemos a completa ausência de cuidados de saúde mental, 89 armas por cada 100 habitantes e a mais alta taxa de homicídios da OCDE e temos um explosivo nas mãos. O rastilho é o individualismo patológico: a ideia de que são ricos todos os que trabalharam para merecê-lo ou são suficientemente inteligentes e que, do outro lado do espelho, os pobres merecem o desprezo dos ricos e o ódio de si próprios. Quem atomiza uma sociedade, desligando o indivíduo do colectivo, faz do ser humano um «lobo solitário». E de um país uma alcateia inteira.

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