Como seria de esperar, a maioria dos meios de comunicação
portugueses, sempre tão atentos ao que se passa na Venezuela, não se referiu às
eleições para governadores realizadas há pouco mais de uma semana. Não lhes
interessa: foram validadas por todos os observadores internacionais e, dos 23
lugares, 18 foram conquistados pelos chavistas.
O regime bolivariano tem o apoio da maioria do povo
venezuelano, mas é a oposição violenta quem conta com os favores dos “média” e
do governo português: ontem, a RTP deu destaque, não ao facto de 4 dos 5
governadores da oposição terem aceitado o cargo perante a Assembleia Constituinte,
mas à falta de medicamentos nas farmácias, fazendo coro com aqueles que
perderam as eleições e o governo português declarou, pela boca do sô Silva,
Ministro dos Negócios Estrangeiros, que apoia e aplaude as sanções contra o
governo de Nicolás Maduro.
Que tudo isto aconteça não é de estranhar. De estranhar, sim,
é o facto de quem se diz de esquerda, por ex., o BE ou próximos dele, acusar
Maduro de “ditador” e o regime bolivariano de “ditadura”. Apenas duas
explicações ocorrem: ou se informam unicamente pela imprensa da paróquia –
nacional e internacional – ou democracia, para eles, resume-se a esta que
conhecemos, a representativa, representativa dos que têm e sempre tiveram o
poder.
O texto que se segue, traduzido do original, põe em
evidência, através da comparação entre o que se passa na Catalunha e na
Venezuela, as mentiras difundidas por quem, de uma forma ou outra, não está
interessado numa verdadeira democracia – a democracia participativa.
SEMELHANÇAS E
DIFERENÇAS ENTRE ESPANHA E VENEZUELA
Por Pascual Serrano*
O desenrolar dos acontecimentos na Catalunha está a gerar
muitas discussões acerca da licitude, legitimidade ou legalidade de alguns
actos tanto do governo catalão como do espanhol. Debate-se, por exemplo, se o
governo espanhol actua de forma unilateral ou fá-lo com o aval dos juízes ou
tribunais. Debate-se, também, se certas acções consideradas ilegais pelos
juízes têm legitimidade quando são apoiadas por centenas de milhar de pessoas
na rua. Tudo isso, como não podia deixar de ser, peneirado pelos meios de
comunicação, que são o filtro com que desde há muito os cidadãos vêem a
realidade. Estes elementos levam-me a ter em conta algumas semelhanças com a
Venezuela, que vale a pena analisar, para, entre outras coisas, pôr em
evidência o duplo critério de muitos. Contudo, existem alguns elementos
diferentes que também devemos ter em conta. Vejamos.
Reivindicações e
manifestações
Semelhanças:
Tanto na Venezuela como na Catalunha, milhares de
manifestantes saíram à rua com exigências que não se ajustavam às legislações
vigentes, nem contavam com apoio legislativo suficiente nos órgãos competentes.
Na Venezuela, pediam a demissão do presidente e a suspensão da eleição da
Assembleia Constituinte (convocada por Maduro com o aval da Constituição).
Nenhuma dessas duas reivindicações contava com apoio legal. Na Catalunha, pedem
que seja vinculante o referendo de 1 de Outubro, o qual tão-pouco se ajusta à
legalidade espanhola.
Muitas das vozes que destacavam os milhares de manifestantes
opositores na Venezuela e a necessidade de o governo Maduro negociar ou aceitar
essas exigências, quando se trata de Espanha limitam-se a recordar a legalidade
e a exigir aos manifestantes e políticos independentistas que abandonem a
ilegalidade e aceitem a ordem constitucional. Esse era precisamente o argumento
esgrimido pelos defensores do chavismo: a oposição não tinha ganhado as
eleições presidenciais, pelo que deviam aceitar o presidente eleito, assim como
as decisões que havia tomado no quadro das suas competências legais.
Diferenças:
Enquanto as manifestações catalãs sempre foram pacíficas, as
venezuelanas eram extremamente violentas. Na Venezuela, os opositores assassinaram
a tiro candidatos partidários do governo, queimaram vivos vários cidadãos
chavistas e, num mesmo dia, ficaram feridos por arma de fogo 21 polícias.
Apesar disso, os governantes espanhóis e a maioria dos meios de comunicação
qualificavam o governo venezuelano de ditadura violenta e apoiavam a oposição.
Em contrapartida, quando se tratava da Catalunha, defendiam a legalidade do
governo espanhol, minimizando a violência vivida nas ruas.
Referendo
Semelhanças:
Tanto na Venezuela como na Catalunha celebraram-se dois
referendos desautorizados pelos governos do país e legalmente não vinculantes.
O da Venezuela foi a 16 de Julho e convocava-o a oposição para exigir a
suspensão das eleições para uma Assembleia Constituinte, anunciadas pelo
presidente Nicolás Maduro. Esse referendo não tinha aval na legislação
venezuelana, nem contou com garantias democráticas, nem reconhecimento
internacional. Apesar disso, foi qualificado pela maioria da imprensa espanhola
de “histórica votação na consulta eleitoral” que “demonstrava o músculo da
oposição”. O mesmo sucede com o referendo de 1 de Outubro, que não tinha
inserção vinculante na legislação espanhola, nem contou com garantias
democráticas, nem reconhecimento internacional. Por isso, a maioria dos meios
de comunicação sempre acrescentaram o qualificativo de “ilegal” quando falavam
do referendo, algo que não tinham feito com o da Venezuela, pois a maior
crítica que lhe fizeram foi chamar-lhe “não oficial”. E, evidentemente, não
qualificavam o referendo catalão de histórica votação ou músculo
independentista, mas, pelo contrário, insistiam em que o resultado não era
rigoroso nem fiável, nem permitia falar em nome da maioria do povo da
Catalunha.
Diferenças:
Enquanto o referendo catalão se desenrolou com cargas
policiais, detenções e centenas de feridos, na Venezuela as autoridades
permitiram a votação e não houve nenhum tipo de repressão policial contra os
votantes, que puderam participar sem qualquer problema.
Detenções
Semelhanças:
Tanto na Venezuela como na Catalunha alguns líderes acabaram
na prisão. Em ambos os casos não foi o governo que os encarcerou, mas os
juízes. Portanto, não é lícito que a quase unanimidade mediática afirme que
Maduro mete na prisão políticos opositores, ignorando que se tratava de uma
decisão judicial e, insista, agora em que os líderes catalães de Omnium e ANC
foram presos por ordem judicial e não por decisão governamental. Não é, pois,
aceitável que, na Venezuela, Leopoldo López e Antonio Ledezma sejam “presos
políticos” e, em Espanha, Jordi Cuixat e Jordi Sánchez sejam “políticos
presos”.
Diferenças:
Ainda que todos os presos sejam acusados de actuar contra a
ordem legal (sedição para uns e instigação pública para o outro), as
mobilizações que Leopoldo López agitou e liderou foram violentas, provocando a
morte de 43 pessoas, centenas de feridos e numerosos danos materiais em
infraestruturas públicas e privadas, sem que isso seja citado na imprensa
quando nos informam da sua prisão. As manifestações que Jordi Cuixat e Jordi
Sánchez lideraram não provocaram nem mortos nem feridos e os danos materiais
limitaram-se a três carros da polícia.
Sistema Judicial
Semelhanças:
Em ambos os países o Procurador Geral e tribunais supremos
são eleitos com critérios políticos. No caso do Procurador Geral elegem-no os
governos. É evidente, portanto, que são correias de transmissão do governo e a
sua missão é perseguir, em nome do Estado, o que se considera delito. Daí que,
se o governo considera delito determinadas actuações, é lógico que o Procurador
inicie o procedimento penal e determine a sansão, inclusivamente a prisão. Por
isso, o Procurador Geral da Venezuela perseguia e solicitava a prisão para os
opositores que entendia terem cometido algum delito e o Procurador espanhol
fazia o mesmo contra os políticos ou líderes catalães.
Diferenças:
Todavia, a maioria dos meios de comunicação espanhóis não
deixava de insistir em que a justiça venezuelana não era independente e que o
governo assumia o controle da Procuradoria, como se em Espanha fosse diferente.
Difundiram-se imagens do Procurador do caso Leopoldo López saindo da Venezuela
para se instalar nos Estados Unidos e acusar o governo de tê-lo pressionado.
Não deixava de ser a versão e a interpretação de uma só pessoa, sem mais
provas, e, inclusivamente, tornava-se ilógico ter aceitado as pressões durante
o processo e, só depois da sentença, sair do país para denunciar isso, quando teria
bastado demitir-se do cargo e não aceitar fazer parte da situação. Em
contrapartida, em Espanha, o Procurador Geral do Estado foi censurado pela
maioria dos deputados do Parlamento espanhol. PSOE, Unidos Podemos, Ciudadanos,
PNV, ERC e parte do Grupo Misto apoiaram uma moção que pedia a demissão do
Procurador Geral pela sua parcialidade e “por incumprimento grave e reiterado
das suas funções”.
Vejo-me na necessidade de esclarecer que não estou a tomar
partido sobre a questão catalã, que não é objecto desta análise, e só me limito
a expor duas situações e comprovar que, efectivamente, as comparações podem ser
odiosas. Mas clarificadoras.
* Jornalista
O original deste texto está aqui