O QUE ELES ESCONDEM

domingo, 28 de junho de 2015

A desconhecida história sobre as negociações da dívida grega

Por Vicenç Navarro*

A grande maioria dos meios de informação e persuasão espanhóis apresentou as negociações que têm ocorrido entre as maiores instituições do sistema financeiro (tanto o Banco Central Europeu, BCE, como o Fundo Monetário Internacional, FMI) e políticos europeus (a Comissão Europeia, o Conselho Europeu e o Eurogrupo, dominado pelo governo alemão), por um lado, e o governo Syriza, da Grécia, por outro, como um desencontro originado pela suposta rigidez e incompetência do último, apesar da paciência e comportamento racional dos primeiros. Em artigos anteriores questionei esta visão tão complacente e pouco crítica, reproduzida como parte do saber convencional (ver “La canallada que le están haciendo a Syriza en Grecia”, Público, 11.06.15) e promovida pelos gurus mediáticos e económicos, todos eles de nítida sensibilidade neoliberal. […]

A evidência científica abundante […] mostra o erro e/ou falácia da dita versão oficial. A última evidência desta falsidade acaba de ser dada por uma pessoa que conhece bem a trama política que esteve por detrás das políticas aprovadas pelas instituições do sistema financeiro e político europeu citado anteriormente e impostas à população grega. A referida pessoa á nada menos que Philippe Legrain, antigo assessor de quem foi Presidente da Comissão Europeia, o Sr. José Manuel Barroso, e que mostra essa evidência no testemunho apresentado na Comissão de Análise da Dívida Pública do Parlamento grego, apenas há uns dias, a 11 de Junho (ver também o artigo do economista James K. Galbraith, “Bad Faith. Whay Real Debt Relief Is Not On the Table for Greece”, Social Europe Journal, 18.06.15).

Segundo o Sr. Legrain, o problema teve início em Maio de 2010, quando o FMI percebeu que o Estado grego não poderia pagar nunca a sua dívida pública acumulada, o que causaria um problema grave para os bancos que a haviam comprado, consequência das suas grandes quantidades de dívida pública adquirida por esses bancos. A sua sobrevivência estava claramente ameaçada. Segundo o Sr. Legrain, o governo alemão tinha também consciência deste grande problema, como os demais elementos do sistema financeiro europeu, incluído o BCE. Todos sabiam que a bancarrota do Estado grego criaria um problema gravíssimo para os bancos que possuíam aquela dívida pública. E este problema podia converter-se num problema político maior. Os bancos estrangeiros (não gregos) que tinham mais dívida pública grega eram os franceses e os alemães (embora também estivessem os espanhóis), que haviam sido muito activos na compra da dívida grega, que gerava uns juros já então muito elevados.

Até aqui o primeiro capítulo do drama, um drama baseado na cumplicidade entre as instituições financeiras (FMI e BCE), por um lado, e as instituições políticas que governam os países do euro (a União Europeia e os principais governos da Eurozona), por outro, para salvar não a Grécia, mas os maiores bancos privados. Dois cidadãos franceses tiveram um papel-chave nesta trama. Um foi o Presidente do FMI, o Sr. Dominique Strauss-Khan, que pensava deixar o FMI para se apresentar às eleições francesas como candidato do Partido Socialista francês, para o cargo de Presidente do país. O outro francês era o Presidente do Banco Central Europeu, o Sr, Jean-Claude Trichet, consciente também das eleições francesas e do desastre que podia ocorrer se alguns dos maiores bancos franceses colapsassem. Preocupação semelhante havia na Alemanha, onde a comunidade bancária gozava (e continua a gozar) de uma enorme influência sobre o Estado Federal alemão. Daí que as instituições se mobilizassem para salvar, repito, não a Grécia, mas os bancos, como expôs claramente o Sr. Philippe Legrain. E foi assim que se deu o resgate à banca por parte do FMI, do BCE e dos maiores governos da Eurozona, comprando-lhe a dívida grega, que ela havia adquirido, plenamente conscientes (repito, plenamente conscientes) de que o Estado grego nunca poderia pagar a dita dívida. Era óbvio que todos os actores daquele drama conheciam isto, embora todos mantivessem um silêncio ensurdecedor, com o objectivo de ocultar uma situação que, se fosse conhecida, teria criado uma revolta popular nos países cujos governos estavam a salvar bancos privados com dinheiro público, comprando-lhes uma dívida pública que nunca poderia ser paga.

Porquê os cortes? O segundo capítulo do drama

O segundo capítulo do drama foi a intensidade e a brutalidade (não há outra forma de o dizer) dos cortes na despesa pública impostos à população grega, uns cortes sem precedente num país europeu em tempo de paz. Estes cortes tinham como objectivo conseguir que o Estado grego pagasse, primeiro aos bancos privados e, mais tarde, às instituições financeiras citadas anteriormente e aos Estados que tinham comprado aos bancos privados os seus títulos de dívida pública grega. Estes cortes foram impostos ao povo grego com pleno conhecimento do enorme dano que causariam, tanto ao bem-estar da população como ao estado da economia grega. O FMI havia estimado que tais cortes originariam uma descida de 5% do PIB. Na realidade, foi muito pior. O PIB grego desceu nada menos que 20% (alguns crêem que foi inclusive mais, uns 25%).

O que é importante assinalar é que outro dos maiores objectivos destes cortes foi o de determinarem uma descida da dívida pública grega, objectivo que (como era fácil de prever), não só não se alcançou como se conseguiu precisamente o contrário. A dívida pública aumentou de forma notável, alcançando 150% do PIB em 2013. Como indicou o Sr. Legrain, na sua declaração perante o Parlamento grego, nenhum desses “especialistas” do FMI foi penalizado pelos seus erros, erros que definiu como “estupidezes”, consequência da aceitação acrítica do dogma neoliberal.

Mas, outro objectivo da imposição das políticas de austeridade era o de castigar o povo grego (e anunciar que se castigaria, com a mesma força, qualquer outro país que não pagasse a dívida pública do seu Estado, como poderia acontecer em Espanha), escolhendo as intervenções que mais dano fariam às classes populares como, por exemplo, as pensões públicas, justificando-o com o argumento de que estas pensões eram exuberantes, argumento que foi, previsivelmente, promovido pelos maiores meios de informação […]. Na realidade, só 14% dos pensionistas recebem mais de 1050 euros por mês. A grande maioria recebe uma pensão abaixo de 665 euros, que é o limiar de pobreza naquele país.

É importante assinalar que nem o governo anterior ao do Syriza, nem as autoridades do FMI, do BCE, da Comissão Europeia ou dos governos alemão e francês jamais exploraram a possibilidade de reduzir o gasto militar, o que não deixa de ser surpreendente, pois a Grécia é o país que mais gasta com as suas forças armadas, na EU-15, depois do Reino Unido. A causa deste silêncio é fácil de ver. A França e a Alemanha eram os maiores fornecedores de armamento, realizando negócios suculentos com a venda de armas ao Exército grego, pagas com dívida pública. A Grécia tem 1.620 veículos blindados, um número mais alto do que o da Alemanha, França e Itália juntas. E, na sua maioria, comprados a estes países.
Foi o governo Syriza, não a Troika, quem propôs que se cortasse na despesa militar e não na das pensões – outro dado também ignorado pelos meios de informação. Na realidade, o governo Syriza foi o único que se atreveu a enfrentar-se com o Exército, tentado que desapareçam as tensões entre a Grécia e a Turquia, habilmente utilizadas pelas forças armadas para perpetuar os seus interesses. Como era previsível, o governo dos EUA e a NATO ajudaram ao rearmamento daquele país, pressionando, ao mesmo tempo,, para que a Grécia faça cortes no seu Estado de Bem-estar, pensões incluídas.

A necessária reestruturação da dívida

O quid da questão, que não apareceu nas negociações até que o Syriza, o partido governante na Grécia, o pôs em cima da mesa, foi a necessidade de reestruturar a dívida pública grega, pois esta dívida não poderia pagar-se nas condições aprovadas nas negociações entre a Troika e o governo grego anterior. Este tema era um tema tabu no início das negociações, embora tenha sido aceite no final. As instituições europeias e o FMI tinham plena consciência disso. Mas preferiam ignorá-lo e continuar a explorar o povo grego, para recuperar algo do dinheiro emprestado (com os respectivos juros).

O que os forçou a considerar a reestruturação da dívida foi o que estava a acontecer na Grécia, assim como em Espanha e em Portugal. As mobilizações populares de apoio ao governo Syriza (e que foram acompanhadas por mobilizações ao longo do território da EU) contra a austeridade, assim como os resultados das eleições municipais e autonómicas espanholas, alarmaram em grande medida essas organizações, pois a vitória do Podemos e outros partidos anti-austeridade, nas grandes cidades, preocupou-os grandemente (ver John Palmer, “We Must Stand With Greece For The Sake of Europe, Social Europe Journal, 22.06.15). E, em Portugal, o Partido Socialista, provável vencedor nas próximas eleições, prometeu anular todas as políticas de austeridade. Hoje, aquilo a que se tem vindo a chamar a nova esquerda está a expandir-se por todo o território europeu, uma nova esquerda que está contra esta Europa, querendo substituí-la por outra diferente. E, a actual está altamente preocupada. Daí a flexibilização da enorme rigidez que tinha mostrado até agora.

Não é necessário dizer que o governo Syriza teve que ceder em algumas exigências impostas pelo sistema financeiro e político, embora menores do que se lhe pedia no começo das negociações. Mas, a vitória do Syriza, a que se deve agradecer por ter iniciado a rebelião contra as medidas de austeridade, significou resistir à maioria das medidas que queriam impor à Grécia e levantar o problema da continuidade do pagamento da dívida pública nas condições actuais, que são inaceitáveis.

Hoje, na Europa, pôs-se em marcha um movimento de protesto contra as imposições do sistema financeiro e económico, que está a acontecer também em Espanha, como mostrou o tsunami político ocorrido nas últimas eleições municipais e autonómicas. Tudo isto mostra que, se as classes populares dos países se mobilizarem, podem ir conquistando espaços de liberdade, democracia e bem-estar que aquele sistema, através dos seus sistemas políticos, lhes têm ido reduzindo durante todos estes anos. Como dizia o meu amigo Eduardo Galeano, “muita gente pequena, em lugares pequenos, fazendo coisas pequenas, pode mudar o mundo”. Está a acontecer na Grécia e em Espanha, tendo-se iniciado um processo que, neste país, começou em 15-M, o qual não podem parar. E se não acreditam, esperem e verão.

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Texto original em  Publico.es

* Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, na Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Foi Catedrático de Economia Aplicada, na Universidade de Barcelona