OS PERIGOS DO TRATADO TRANSATLÂNTICO
Por Gaël De Santis*
O projecto escondido pelos dirigentes
europeus e americanos antes das eleições.
Se
não nos acautelarmos, a mão invisível do mercado, que tantos estragos fez na
União Europeia (UE), poderá executar o seu trabalho sujo a uma escala ainda
maior.
Neste
preciso momento em que os aspirantes a deputados europeus se encontram em
campanha, está a ser negociada uma parceria transatlântica de comércio e
investimento (TTIP), mais conhecida por grande mercado transatlântico.
Ainda
pode ser travado. Os parlamentares, saídos do escrutínio de 25 de Maio, terão
de validar ou rejeitar este projecto, quando as negociações estiverem
concluídas. Os 28 Estados terão, igualmente, que se pronunciar.
Se
entrasse em vigor, o TTIP teria efeitos nefastos sobre a economia, mas, também,
sobre os direitos dos trabalhadores europeus e estado-unidenses, expostos às arbitrariedades
dos ventos da concorrência livre e não falseada. Do lado europeu, os promotores
do projecto não procuram outra coisa senão testar, numa escala maior, o que já
falhou. As negociações mantêm-se à porta fechada entre as equipas do comissário
Karel De Gucht, pela UE, e do representante para o Comércio, Michael Froman,
pelos Estados Unidos.
A
próxima reunião terá lugar dia 19 de Maio, a seis dias das eleições europeias,
sem que os cidadãos sejam informados sobre o estado actual das negociações. O objectivo
da Comissão é o de criar a maior zona de livre comércio do mundo, que pesará
30% do comércio mundial. Isto teria duas vantagens: dar uma ajudinha de 0,5% do
PIB à economia europeia, daqui a 2027, e fazer baixar os preços. É o que
defende um estudo oficial, publicado, em Setembro, pela Comissão. Outras
avaliações são menos encomiásticas, como a da Fundação Austríaca para a
Investigação e Desenvolvimento, que avalia estes ganhos limitados e que pesarão
nas contas públicas: a diminuição dos direitos alfandegários acarretarão uma
perda de 20 biliões de euros para o orçamento europeu, durante os próximos 10
anos e os Estados terão de encontrar 1,4 biliões de euros, por ano, para fazer
face às despesas com o desemprego. Com efeito, entre 430.000 e 1,1 milhão de
pessoas terão de mudar de emprego, como resultado das reestreuturações
necessárias.
Mas,
o pior não está aí.
O
mandato de negociação, adoptado pelos ministros do Comércio, em 14 de Junho
último, contém perspectivas de evolução destrutivas do modelo social europeu. A
soberania dos Estados é atacada pela perspectiva da criação de um “mecanismo de
regulação dos diferendos” entre investidores e Estados. Os litígios entre os
dois poderiam ser resolvidos em tribunais privados.
O
objectivo é afastar qualquer obstáculo à mão livre do mercado. Por
consequência, os direitos alfandegários serão fortemente reduzidos. Eles são já
baixos, argumentam os defensores do tratado. A UE cobra, hoje, 3,3% sobre as
importações provenientes dos Estados Unidos. Mas, alguns sectores, onde os
direitos alfandegários são ainda elevados (carne, produtos agrícolas), poderiam
ter que enfrentar uma concorrência desenfreada dos produtores americanos,
originando uma forte volatilidade nos preços dos géneros alimentares.
Dos
dois lados do Atlântico, querem derrubar as “barreiras não tarifárias”, isto é,
as diferenças de normas sanitárias ou de segurança. Ora, quanto a isto, entre
os Estados Unidos e a Europa, as concepções e culturas são diferentes. Lá,
explora-se o gás de xisto de qualquer maneira, mergulha-se os frangos em água
com cloro e não se refila por ingerir cereais OGM. Para que haja normas comuns,
cada um terá de dar um passo na direcção do outro.
Esta
harmonização das normas oferece um segundo perigo – o geopolítico. A nova
parceria pesará 54% do PIB mundial e metade do consumo do planeta. As normas
transatlânticas impor-se-ão ao resto do mundo. Isto permitiria ao Tio Sam
prolongar, durante mais algum tempo, a sua hegemonia declinante e fazer frente
à progressão rápida dos países emergentes. ´
O
presidente Barack Obama só tem olhos para José Manuel Barroso, presidente da
Comissão, que convenceu os Estados europeus a entrar neste negócio de vigaristas.
Obama e o seu Secretário John Kerry multiplicam as idas e vindas ao sudeste
asiático, para contrabalançar, aí, a influência da China e instalar uma
parceria dos dois lados do Pacífico, semelhante ao futuro tratado
transatlântico.
Por
detrás deste projecto, prepara-se uma NATO económica, contra a qual está já a
levantar-se uma ampla coligação de organizações sindicais, cidadãs, políticas,
dos dois lados do Atlântico. Tanto para os militantes estado-unidenses, como
europeus “é importante mostrar que não são eles contra nós, mas que temos
interesses comuns”, previne Hélène Cabioc’h, da rede Aitec.__________
* Jornalista
O original encontra-se em http://www.humanite.fr/telecharger-lhumanite-speciale-revelations-des-dangers-du-traite-transatlantique-528708
TRIBUNAIS
ARBITRAIS: AS MULTINACIONAIS FORA DA LEI
Por Gaël De Santis
O principal perigo deste tratado é a
instauração de uma justiça privada, que poderia impedir, a pedido das grandes
empresas, os Estados de definir as suas prioridades políticas.
Como
ficar de mãos atadas? Perguntem aos ministros do Comércio da União Europeia
(UE) que, no dia 14 de Junho de 2013, redigiram o mandato de negociação da
Comissão com vista a um tratado de livre comércio com os Estados Unidos. Eles
aceitaram, sob pressão dos Estados Unidos, encetar conversações sobre um
mecanismo de regulação de diferendos.
Por
detrás deste termo pomposo e misterioso, esconde-se uma verdadeira máquina de
guerra contra a soberania dos Estados. De que se trata? Quando uma
multinacional julgar que a decisão de um governo é um entrave à sua “liberdade
de investir”, pode apresentar queixa. Perante quem? Não será perante a justiça
desse Estado, a quem é retirada a soberania judicial. O dito Estado será levado
perante um tribunal arbitral internacional.
Estes
tribunais não são outra coisa que empresas privadas, encarregadas de ditar as
leis. Ora, estas leis privilegiam o livre comércio face às leis emanadas dos
Parlamentos. É “um risco injustificado contra a capacidade de decisão política
a nível local” e nacional – inquieta-se a Federação dos Sindicatos
estado-unidenses (AFL-CIO).
A
ameaça não é um fantasma. Ela é concreta e está já a causr prejuízos em muitas
partes do mundo. Se um Estado quiser prevenir o tabagismo, alto lá! O gigante Philip
Morris está atento: apresentou queixa nos tribunais arbitrais, contra o Uruguai
e a Austrália, com base em disposições inscritas nos acordos de livre comércio
entre estes países e os Estados Unidos. Os dois países tiveram a infeliz ideia
de inscrever, obrigatoriamente, mensagens de prevenção... Por seu lado, a
companhia estado-unidense Lone Pine persegue em tribunal o Quebeque, que
decidiu fazer uma moratória sobre a fracturação hidráulica, tecnologia que
permite extrair gás de xisto de maneira poluente [1].
Como
se vê, estes procedimentos, através dos quais as firmas multinacionais pedem
indemnizações recorde, são verdadeiras armas anti-regulação. Com efeito, mesmo
quando o processo não lhes é favorável, a insegurança jurídica permanece e pode
revelar-se dissuasiva para os Estados.
Por
vezes, são as políticas sociais as atacadas. Assim, a Eslováquia foi condenada,
por um tribunal arbitral, a pagar 22 milhões de euros à empresa holandesa
Achmea, com base no tratado bilateral de investimento entre Bratislava e
Amsterdão. Em 2006, a esquerda, de regresso ao poder, decidiu exigir às
seguradoras de saúde que não distribuíssem mais dividendos. Para que conste, a
Eslováquia, recusando conformar-se com a decisão do tribunal, viu, o ano
passado, alguns dos seus bens serem confiscados, no Luxemburgo, alardeia a
seguradora holandesa no seu site da internet.
As
escolhas industriais dos países são, igualmente, contestadas. É o que se passa
na Alemanha, que decidiu virar a página do nuclear. A empresa Vattenfall sueca
acaba de pedir 3,7 mil milhões de euros de compensação.
Pseudo-consulta pública
Por
fim, é a capacidade dos países em anular uma parte da sua dívida que é
ameaçada. A Argentina foi alvo de um processo. E a Grécia está a sofrer o
mesmo, neste momento. Um banco da Eslováquia, Postava, e investidores
cipriotas, em nome de um acordo de investimento entre estes países, exigem ser
reembolsados pelos títulos do Tesouro que foram anulados, em 2012, no
seguimento de um acordo internacional com o Fundo Monetário Internacional e a
União Europeia. O dossier é explosivo e a Comissão sabe. Por isso, suspendeu as
negociações neste capítulo do acordo transatlântico, em Janeiro, e lançou uma
pseudo-consulta pública sobre o assunto... que lhe permitirá retomar as
negociações logo após as eleições europeias.
Antes
da redacção do mandato de negociação, em 14 de Junho, o Parlamento francês
havia exigido, explicitamente, uma resolução em “que seja excluído o mandato de
recurso a um mecanismo específico de regulação dos diferendos”. Estes
mecanismos farão a fortuna dos escritórios de advogados especializados e,
também, das empresas encarregadas de fazer a lei.
No
fim do ano passado, o Centro Internacional para a Regulação de Diferendos
relativos aos investimentos (CIRDI) tinha registado 459 queixas, desde 1972.
Este número está a aumentar. Não eram mais que 3 por ano, em 1996. Foram 50, em
2012 e 40, em 2013.______________
[1] A fracturação hidráulica consiste em injectar, sob forte pressão, uma mistura de água, produtos químicos e areia a fim de partir a rocha e provocar a libertação dos hidrocarbonetos. Este tipo de exploração de gás e petróleo implica a perfuração de numerosos poços, já que a capacidade se esgota numa dezena de anos. Requere, ainda, um grande consumo de água e provoca a descarga de grande quantidade de resíduos líquidos tóxicos, bem como de um gás com efeito de estufa, o metano. [NT]