O QUE ELES ESCONDEM

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Algumas frases colocadas no Twitter*, por Miguel Ángel Revilla**:

"A recessão terminou. Os cem mais ricos do mundo que, em 2007, tinham 1,2 biliões de euros, têm agora 1,7 biliões."

"A recessão terminou. Aqueles que a provocaram já podem fazer negócio com a Saúde, a Educação e as Pensões."

" A recessão terminou. Aqueles que a provocaram têm, agora, 6 milhões de pessoas na fila para trabalhar por 600 euros".


* @RevillaMiguelA

** Presidente da Comunidade Autónoma de Cantábria, entre 2003 e 2011.
   Licenciado em Ciências Económicas e diplomado em Banca e Bolsa pela Universidade   do País Basco; Professor de Estrutura Económica, na Escola Superior de Direcção de Empresas, de Santander (1979-82); Professor de Política Económica e Finanças Públicas, na Universidade de Cantábria, até 1995.
 



quinta-feira, 30 de janeiro de 2014


O QUE NÃO SE DIZ SOBRE AS CAUSAS DA GRANDE RECESSÃO
 Por Vicenç Navarro*

O título deste artigo poderá surpreender o leitor, visto ter-se já escrito tanto sobre as causas da crise, que pareceria que tudo foi dito e escrito. Pois, não, não se disse e não se publicou tudo. Na realidade, muito pouco se disse ou se publicou, nos maiores fóruns de informação e persuasão, sobre as causas reais do que se chama a Grande Recessão. Espero que, no final deste artigo, entenda a razão pela qual se falou muito pouco sobre este assunto.

Três são as causas da Grande Recessão. Uma, sobre a qual se escreveu bastante, é a do crescimento do capital financiero, isto é, das instituições como a banca, as companhias de seguros e outras, cujo negócio se baseia em manejar dinheiro. A outra causa, relacionada com a anterior, é a desregulamentação deste capital financiero e, muito especialmente, o do sector bancário, que criou o que, correntemente, foi definido como “capitalismo de casino”, quer dizer, baseado na especulação. Esta desregulamentação foi dada como parte de uma cultura desreguladora, que afectou outras actividades económicas, como a desregulamentação do comércio. Disto, também, se tem falado extensamente.

Mas, do que não se tem falado é precisamente do que há por detrás do aumento do crescimento do capital financiero ou do que se chama financeirização da economía e da sua deriva especulativa. Esta ignorada ou desconhecida ou, inclusive, ocultada causa é nem mais nem menos do que o enorme crescimento das desigualdades de rendimento, na maioria dos países, definidos como países avançados económicamente – básicamente, os da OCDE, o clube dos países mais ricos do mundo.

E, aquí, o leitor vai permitir que explique o que quer dizer “o aumento das desigualdades na distribuição de rendimentos, num país”. Comecemos, primeiramente, com o conceito de “distribuição de rendimentos”. Os rendimentos (o dinheiro que a gente recebe) podem proceder do trabalho (predominantemente, através dos salários) ou da propriedade do capital, isto é, propriedade como, por ex., acções, que geram rendimentos. Pois bem, a distribuição dos rendimentos é o factor determinante para entender a evolução económica (e, também, política) de um país.

A maioria da população recebe os seus rendimentos do trabalho. Daí que, quando estes rendimentos diminuem (e podem diminuir devido a várias circunstâncias, como a diminuição dos salários e/ou do número de pessoas que trabalha e/ou do aumento do desemprego), a procura de produtos e serviços e a respectiva produção de produtos e serviços também diminue, com o qual a economía sofre uma descida, que é o que se chama recessão.

A “descoberta” desta relação entre a diminuição da procura e a crise económica atribuí-se, geralmente, ao famoso economista Keynes, o que não é, de modo nenhum, verdadeiro. Na realidade, e o leitor ficará surpreendido se souber que foi Karl Marx –  visto com muito maus olhos, em Espanha -  quem já o tinha indicado, quando disse, no seu libro mais conhecido, O Capital, que a acumulação de capital, à custa do trabalho, levaria às crises do capitalismo. Mas, mais que Karl Marx, quem desenvolveu mais esta teoría foi um dos seus seguidores, M. Kalecki, quem, por sua vez, influenciou dois dos melhores economistas do nosso tempo, Joan Robinson e o meu amigo Paul Sweezy, nenhum dos quais, evidentemente, recebeu o prémio Nobel de Economia. Em vez deles, os prémios Nobel de Economia (financiados pela banca escandinava) eran entregues a ultraliberais como Robert Lucas, que escreveu que analisar os temas de distribuição de rendimentos era prejudicial e perigoso (“uma das tendências perniciosas e prejudiciais no conhecimento económico… na realidade, venenosa para tal conhecimento, é o estudo de temas de distribuição”. The Industrial Revolution: Past and Future). Não é necessário dizer que Lucas era um economista super próximo do capital, que não quer ouvir falar de redistribuição de rendimentos. Autores como Lucas e outros economistas neoliberais continuam a ter muito boa aceitação, não só nos círculos académicos espanhóis, mas também na imprensa, em geral.

Porquê a financiarização da economía?

Vejamos: quando as pessoas não têm dinheiro, pedem-no emprestado. Isso explica o grande crescimento da banca. O tremendo endividamento das famílias espanholas, assim como das médias e pequenas empresas (que são as que mais criam emprego em Espanha), debe-se, precisamente, à diminuição dos rendimentos do trabalho. Quanto maior é a diminuição das primeiras, maior é o crescimento da segunda (já para não falar de outros factores que também intervêm, como a maior ou menor disponibilidade de crédito. Mas isto não explica por si só o enorme crescimento do endividamento).

E os dados falam por si próprios. Os rendimentos do trabalho como percentagem do PIB baixaram, em Espanha, de 68%, na década de oitenta, para 62%, na primeira década do séc. XXI. Nos EUA, durante o mesmo período, baixaram de 68% para 65%. Algo parecido acontece una maioria dos países da OCDE, embora o grau de descida e a percentagem variem consideravelmente. Mas, até em países nórdicos, como a Suécia, a descida, mesmo quando menor, foi de 71% para 69%. A Espanha, juntamente com a Grécia (que passou de 67% para 60%), a Itália (de 68% para 65%) e a Irlanda (de 70% para 55%), foram dos países em que a percentagem do rendimento do trabalho no PIB era mais baixo e aqueles em que mais baixou (Eckhard Hein, “Finance-dominated Capitalism and Income Distribution. Implications for an ‘Agenda of Shared Prosperity’”) Em todos eles os rendimentos do trabalho baixaram rapidamente à custa do incremento das rendas do capital. Esta é a realidade, ignorada, desconhecida ou ocultada. E não é casualidade, certamente, que a Grécia, Irlanda, Itália e Espanha sejam os países onde a Grande Recessão foi mais acentuada (ver o meu artigo “Capital-Trabajo: el origen de la crisis actual”, Le Monde Diplomatique, julho de 2013). É nestes países onde o problema da procura é maior e, portanto, a recessão é também maior.

Por que razão aumentou a especulação financeira?

Esta descida do peso do rendimento do trabalho pode não se traducir na descida da procura se a capacidade aquisitiva da população não descer como consequência de conseguir pedir emprestado dinheiro para continuar a comprar os productos e serviços de que necesita. Isto é, o crédito ( que a banca lhe proporciona) pode manter a procura. Mas, até certo ponto. E aí está a raíz do problema. A procura persiste, mas vai caindo, e com ela a actividade económica. E isso pode representar um problema, inclusive para o mundo do capital, pois, se não há suficiente procura, as fábricas produzem menos e os proprietários podem conseguir menos lucros. Aquilo a que se chama a “rentabilidade do capital” fica afectada quando a procura baixa. Daí que quem tem muito dinheiro não vai investir no que se chama economia produtiva (quer dizer, em produtos e serviços), mas em áreas onde a rentabilidade seja maior, tais como as actividades especulativas,por exemplo, no sector imobiliário. É assim que se produz a enorme explosão de bolhas especulativas, facilitada pela desregulamentação da banca. Claro que toda a bolha, por definição, explode. E quando explode, a banca colapsa ou paralisa, o crédito desaparece e a economía colapsa,pois, sem crédito, a procura também colapsa, já que os salários, cada vez mais baixos, sem crédito, não a podem manter. E aí surge a Grande Depressão. A enorme concentração da riqueza criou a Grande Recessão, da mesma maneira que antes, nos principios do século XX, criou a Grande Depressão.

E porque houve esta concentração de riqueza?

Uma vez que se entendam as causas da crise, as soluções são bastante fáceis. Com o risco de pecar por imodéstia, asseguro-vos que a grande maioria dos meus estudantes da disciplina de Políticas Públicas e Sociais da UPF-Hopkins, ao terminar os seus estudos,sabem como resolver a crise. As soluções não são difíceis de ver, do ponto de vista científico: inverter as políticas públicas que se têm desenvolvido, a maioria desde o período de 1980 até agora, mudando o signo destas intervenções, favorecendo os rendimentos do trabalho, em vez das rendimentos do capital. Isto implica uma importante redistribuição  das rendas do país, diminuindo os rendimentos do capital – incluindo a substituição do capital por outras formas de propriedade, em muitas áreas da economía – e aumentando os rendimentos do trabalho.

A solução para sair da crise é um aumento notável dos rendimentos do trabalho (com base no aumento dos salários, da ocupação e do emprego) e uma descida da do capital. E, como acabo de dizer, com uma notável redução, não só do espaço do capital financiero, mas também da sua propriedade e comportamento, eliminando, por exemplo, o carácter especulativo do capital privado, substituindo-o no caso da banca, por capital público. Não tem sentido, por exemplo, que a banca privada consiga empréstimos baratíssimos do Banco Central Europeu (BCE), que é uma entidade pública, para que, a seguir, os bancos privados emprestem esse dinheiro a juros altíssimos às autoridades públicas (como o Estado) ou às empresas. É muito mais eficiente e justo eliminar o intermediário – a banca privada – e que o BCE empreste aos Estados directamente e que estes emprestem à população e às empresas directamente (ver o meu artigo “Uma das mil razões para estar indignados”. El Plural, 13.01.14) E, como parte desta solução, diminuir o grande leque salarial (que tem aumentado entre a população assalariada), impedindo que os salários mais altos sejam, como agora, obscenamente altos, sem nenhuma relação com a produtividade. E, muito importante, terminar com a “beneficência” à banca, que foi a que mais beneficiou da generosidade estatal.

Pois bem, que isso aconteça ou não, depende de causas políticas. Para que aconteça, é necessário uma mudança profunda nas relações de poder, incluindo as relações de poder de classe, em que uma minoria controla a maioria das instituições mediáticas e políticas dos países da OCDE, impondo as políticas ultraliberais que estão prejudicando enormemente a população
 
Artigo publicado na revista digital SISTEMA, em 24 de Janeiro de 2014

*Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha). Foi Catedrático de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona. É professor de Políticas Públicas na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, EUA), onde exerceu docência durante 35 anos. Dirige o Programa em Políticas Públicas e Sociais patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e pela Universidade Johns Hopkins. Dirige o Observatório Social de Espanha.

Sítio do autor: www.vnavarro.org








 

 

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014


Alemanha

Pobreza, negócios e ensaio repressivo

Uma em cada cinco crianças alemãs encontra-se em risco ou em situação de pobreza. No Leste do país, a percentagem ascende a 23,6 por cento, enquanto que no Ocidente a taxa estimada é de 17,4 por cento, de acordo com uma pesquisa elaborada pelo Instituto de Economia e Ciências Sociais da Fundação Hans Boeckler. Os dados, citados pela Prensa Latina, indicam também que o flagelo é particularmente grave em regiões como a Renânia do Norte-Vestefália, onde, afirma-se, o risco cresceu com o processo de desindustrialização dos últimos anos.
A par dos sinais de empobrecimento, na Alemanha acumulam-se os exemplos de negócios ruinosos para o Estado em obras públicas. Segundo o levantamento efectuado pelo correspondente do La Vanguardia em Berlim, Rafael Poch, esse é o caso do novo aeroporto da capital alemã, cujo custo final poucos arriscam calcular. Diz-se que a infra-estrutura já terá consumido pelo menos 5300 milhões de euros, mais do dobro do orçamento inicial. A data de inauguração ninguém adianta, isto depois de adiamentos em 2012, 2013, e, agora, disse o presidente da câmara berlinense, igualmente em 2014.

Caro e ainda inútil é o novo aeroporto de Kassel-Calden, que desde Outubro não teve nenhum passageiro, nota o jornalista, sustentando que 270 milhões de euros (quatro vezes o valor de partida) foram gastos numa plataforma sem futuro à vista, uma vez que se situa próxima dos aeroportos de Frankfurt e Hannover.
Poch refere ainda outros exemplos semelhantes na mais poderosa economia da UE e promotora severa das políticas de «austeridade», tais como a estação ferroviária de Estugarda, as óperas de Elba-Hamburgo e Berlim, ou o túnel ferroviário de Leipzig (custo inicial de 572 milhões e custo final de 960 milhões), sugerindo uma tendência.


«Ensaio» em Hamburgo
 Negócios – imobiliários, mais precisamente –, é o que está na base da situação de excepção que nas últimas semanas se tem vivido no centro histórico de Hamburgo. Protestos e confrontos com a polícia de choque sucedem-se nos bairros históricos de Schanzenviertel e Sankt Pauli. No primeiro, está em causa o despejo de um centro social, o Rote Flora, que funciona desde 1989 num antigo teatro público. Em 2001, o edifício foi vendido por 190 mil euros a um privado, que estima em 20 milhões de euros o valor do imóvel e pretende rentabilizá-lo.

Já em Sankt Pauli, a discórdia brotou quando cerca de uma centena de apartamentos foram evacuados devido ao perigo de colapso. Os inquilinos testemunham que o estado dos imóveis não justifica rendas mensais até 930 euros. O proprietário e o governo da cidade defendem a demolição, mas os locatários querem a requalificação dos edifícios temendo que o novo projecto imobiliário os exclua.
Com 10 por cento dos mais ricos a controlarem 65 por cento da riqueza criada na metrópole, 13 por cento da população dependente de subsídios públicos (entre os quais milhares de pensionistas), 23 por cento de crianças na pobreza – cifra que ascende a 50 por cento nos bairros mais deprimidos –, e uma taxa oficial de desemprego de 7,3 por cento, Hamburgo é um caldeirão em ebulição.

A 3 de Janeiro, o governo municipal decretou o estado de excepção nas chamadas zonas de conflito. Justificou a medida com a proliferação dos protestos e atribuindo o ataque a uma esquadra da polícia aos manifestantes. O prestigiado semanário Der Spiegel desmentiu a acusação, o que adensou a ira de milhares de habitantes do centro histórico, que se vêem impedidos de se movimentarem ao abrigo de uma lei praticamente só usada em partidas de futebol de alto risco ou em operações de apreensão de droga.
Desde a implementação da «flexibilização do mercado de trabalho», em 2002, pelo governo de Gehrard Scroeder, até à actualidade, com Angela Merkel a iniciar um terceiro mandato, o número de alemães que sobrevivem com 450 euros por mês cresceu para oito milhões. Os bancos alimentares quase triplicaram no mesmo período, passando de 310 para 960.

Especula-se que a repressão em Hamburgo seja um ensaio para respostas musculadas do poder face ao previsível aumento da contestação social.

 In Avante!, 23/1/2014

terça-feira, 28 de janeiro de 2014


Há pouco tempo, deu-se o caso insólito de vários países da União Europeia terem proibido a passagem, no respectivo espaço aéreo, do avião que, já no ar, transportava o Presidente da Bolívia.
Neste atentado à vida de um homem e dos restantes que com ele seguiam, o governo português, na figura impoluta do ministro Portas, apressou-se a colaborar no crime.

Soube-se que a ordem de assassinato viera dos EUA e os lacaios europeus prontificaram-se a executá-la.
Não por acaso o prémio dito da Paz foi atribuído a Obama e a esta União Europeia, depois de já ter na lista muitos outros criminosos e assassinos, como Kissinger.

A sanha a Evo Morales e a raiva crescente pelo facto de terem falhado os anteriores atentados contra a sua vida, fizeram com que, desta vez, tivessem perdido a cabeça e agido sem rodeios.
Mas, que razões movem a tamanho ódio?

E o que escondem ou deturpam os meios de desinformação, em Portugal e por essa Europa fora, sobre o Presidente da Bolívia e a acção do seu governo?
 

Alguns dados, retirados do relatório que Evo Morales apresentou ao Parlamento boliviano, no dia em que cumpriu 8 anos à frente do governo (22/1/2014):

- Em 2005, o investimento nas empresas petrolíferas era de 246 milhões de dólares. Em 2013, foi de 1.835.
- O orçamento para a Saúde, o PGE 2005 era de 50.000 milhões de bolivianos. Agora é de 288.00 milhões, isto é, um aumento de 476%, em que se construíram 758 modernos centros de saúde, em diferentes regiões do país, em particular, nas áreas rurais.

- Em 2005, o nível de investimento na Educação era de 6.519 milhões de bolivianos. Em 2013, foi de 15.000 milhões.
- O PIB subiu de 9.521 milhões de dólares, em 2005, para 30.789 milhões, em 2013 e o rendimento per capita passou de 1.010 para 2.794.

- Nacionalizou as empresas petrolíferas.
- Aumentou em 100% a produção de gaz natural.

Excertos do discurso de Evo Morales, na ONU, na altura de assumir, depois de eleito, a presidência do G77 + China:
“O sistema capitalista enfrenta a sua crise mais profunda: é uma crise financeira, climática, alimentária, institucional e de modelo de vida. O mundo sofre os efeitos dessa catástrofe provocada pelo capitalismo, que converte a mãe terra e as pessoas em objecto do seu despiedado domínio predador.

Vivemos uma crise financeira porque os países do centro capitalista concentraram a riqueza nas elites excluentes e magnificaram a pobreza e a fome.”
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“Resumindo, vivemos a crise de um modelo económico, em que as receitas do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e dos organismos multilaterais (privatizações e restrição das políticas sociais) já não podem resolver os problemas dos países do centro capitalista.”
....

“Refundar a democracia: da democracia representativa à democracia participativa e comunitária, que democratiza a riqueza.”
...

“O que acontece é que o povo sente que depositar o seu voto de 4 em 4 ou de 5 em 5 anos não é suficiente. Sente que o seu voto é trocado todos os dias pela ditadura dos mercados financeiros. (...) O povo necessita de novos mecanismos democráticos para mudar o mundo (...)

A nova história reclama passar da democracia representativa, em que o poder está maioritariamente ao serviço de elites, para a democracia participativa e comunal, onde os jovens, indígenas, mulheres, camponeses, trabalhadores participemos activamente nas decisões sobre as nossas vidas, sobre os nossos direitos, sobre os nossos bens comuns.”
...

“(...) não há democracia real sem democracia económica, sem distribuição da riqueza que é de todos.”

 

 

 

sábado, 25 de janeiro de 2014


Mentiras obscenas

No final do Verão, o Presidente Obama anunciou a sua decisão de atacar a Síria, acusando o seu governo dum ataque com armas químicas. O discurso de Obama (10.9.13) não admitia dúvidas: «no dia 21 de Agosto [...] o governo de Assad matou com gases mil pessoas, incluindo centenas de crianças. […] Sabemos que o regime de Assad é responsável». O MNE Kerry desdobrou-se em pormenores «comprovativos». A comunicação social de regime estava em «frenesim de guerra» e o «socialista» Hollande chegou a dar ordens para começar o ataque na madrugada de 1 de Setembro (Nouvel Observateur, 29.9.13) . Foi uma (inacabada) versão B da obscena telenovela de Bush, Blair e Barroso.

 Dois peritos norte-americanos, Postol (do MIT) e Lloyd (ex-inspector armamentista da ONU) afirmam agora (relatório de 14 de Janeiro) que «não é possível que [o gás sarin] tenha sido disparado a partir da zona controlada pelo governo sírio indicada no mapa dos serviços secretos publicado pela Casa Branca a 30 de Agosto de 2013». Também o canal noticioso oficial alemão, Deutsche Welle noticia o estudo e acrescenta (18.1.14): «esta conclusão não é inteiramente nova. Há um mês, um inspector armamentista da ONU, Ake Sellström, também questionou a versão dos EUA sobre a atrocidade». O canal russo RT (16.1.14) cita Postol: «quando comecei este processo, a minha opinião era que só podia ser o governo sírio que estava por detrás do ataque. Mas hoje já não tenho a certeza de nada. A narrativa do governo [dos EUA] nem sequer se aproxima da realidade». Sem imputar responsabilidades pelo ataque, Lloyd acrescenta: «os rebeldes têm seguramente a capacidade para criar este tipo de armas, talvez até tenham mais capacidade do que o governo sírio». O mesmo afirma Seymour Hersh (London Review of Books, 19.12.13), jornalista famoso pela sua denúncia do massacre de My Lai na guerra do Vietname: «o exército sírio não é a única parte na guerra civil do país com acesso ao sarin».

 Para evitar o ataque Hollande-Obama, o governo sírio aceitou um «acordo» que impôs o seu desarmamento unilateral de armas químicas, mas não impôs nada aos «rebeldes» e seus múltiplos padrinhos externos, ou ao vizinho israelita (para se defender do qual o regime tinha as armas químicas). Mas o próprio processo de desarmamento químico, no qual Paulo Portas quis envolver o nosso país, é uma saga obscena. As potências bélicas, sempre prontas para ataques militares, querem lavar o mais possível as mãos do processo. As armas já foram embaladas e transportadas até ao porto sírio de Latakia pelo exército sírio com auxílio russo. O transporte marítimo para fora da Síria é assegurado por países nórdicos, pela Rússia e China. Mas nenhum país está disposto a acolher e destruir as armas no seu território: a França, a Bélgica e a Noruega recusam. Em Novembro lembraram-se da Albânia! Após dias de manifestações de protesto nas ruas, o sempre dócil governo albanês foi obrigado a recusar (Telegraph, 18.11.13). E assim, ganha forma a ideia (Telegraph, 9.1.14) de as armas químicas serem levadas para o Sul de Itália, trasladadas para bordo dum navio civil dos EUA (da US Maritime Administration do Ministério dos Transportes), onde militares dos EUA procederão à sua decomposição, sendo os compostos menos tóxicos «destruídos por uma companhia comercial» em Inglaterra e os mais tóxicos… despejados em pleno Mediterrâneo. A julgar pelo mapa que acompanha a notícia do Telegraph, algures ao largo de costas PIGS: Itália, Grécia, Líbia. Se as garantias de segurança são como as garantias de culpa do governo sírio, os motivos de preocupação são sérios.

Jorge Cadima, in Avante!, 23 / 1 /2014

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014


 

O dia em que acabou a crise!*

Quando terminar a recessão teremos perdido 30 anos de direitos e salários…

Um dia no ano 2014 vamos acordar e vão anunciar-nos que a crise terminou. Correrão rios de tinta escrita com as nossas dores, celebrarão o fim do pesadelo, vão fazer-nos crer que o perigo passou embora nos advirtam que continua a haver sintomas de debilidade e que é necessário ser muito prudente para evitar recaídas. Conseguirão que respiremos aliviados, que celebremos o acontecimento, que dispamos a atitude critica contra os poderes e prometerão que, pouco a pouco, a tranquilidade voltará à nossas vidas.

Um dia no ano 2014, a crise terminará oficialmente e ficaremos com cara de tolos agradecidos, darão por boas as politicas de ajuste e voltarão a dar corda ao carrocel da economia. Obviamente a crise ecológica, a crise da distribuição desigual, a crise da impossibilidade de crescimento infinito permanecerá intacta mas essa ameaça nunca foi publicada nem difundida e os que de verdade dominam o mundo terão posto um ponto final a esta crise fraudulenta (metade realidade, metade ficção), cuja origem é difícil de decifrar mas cujos objectivos foram claros e contundentes:

Fazer-nos retroceder 30 anos em direitos e em salários

Um dia no ano 2014, quando os salários tiverem descido a níveis terceiro-mundistas; quando o trabalho for tão barato que deixe de ser o factor determinante do produto; quando tiverem ajoelhado todas as profissões para que os seus saberes caibam numa folha de pagamento miserável; quando tiverem amestrado a juventude na arte de trabalhar quase de graça; quando dispuserem de uma reserva de uns milhões de pessoas desempregadas dispostas a ser polivalentes, descartáveis e maliáveis para fugir ao inferno do desespero, ENTÃO A CRISE TERÁ TERMINADO.

Um dia do ano 2014, quando os alunos chegarem às aulas e se tenha conseguido expulsar do sistema educativo 30% dos estudantes sem deixar rastro visível da façanha; quando a saúde se compre e não se ofereça; quando o estado da nossa saúde se pareça com o da nossa conta bancária; quando nos cobrarem por cada serviço, por cada direito, por cada benefício; quando as pensões forem tardias e raquíticas; quando nos convençam que necessitamos de seguros privados para garantir as nossas vidas, ENTÃO TERÁ ACABADO A CRISE.

Um dia do ano 2014, quando tiverem conseguido nivelar por baixo todos e toda a estrutura social (excepto a cúpula posta cuidadosamente a salvo em cada sector), pisemos os charcos da escassez ou sintamos o respirar do medo nas nossas costas; quando nos tivermos cansado de nos confrontarmos uns aos outros e se tenhas destruído todas as pontes de solidariedade. ENTÃO ANUNCIARÃO QUE A CRISE TERMINOU.

Nunca em tão pouco tempo se conseguiu tanto. Somente cinco anos bastaram para reduzir a cinzas direitos que demoraram séculos a ser conquistados e a estenderem-se. Uma devastação tão brutal da paisagem social só se tinha conseguido na Europa através da guerra.

Ainda que, pensando bem, também neste caso foi o inimigo que ditou as regras, a duração dos combates, a estratégia a seguir e as condições do armistício.

Por isso, não só me preocupa quando sairemos da crise, mas como sairemos dela. O seu grande triunfo será não só fazer-nos mais pobres e desiguais, mas também mais cobardes e resignados já que sem estes últimos ingredientes o terreno que tão facilmente ganharam entraria novamente em disputa.

Neste momento puseram o relógio da história a andar para trás e ganharam 30 anos para os seus interesses. Agora faltam os últimos retoques ao novo marco social: um pouco mais de privatizações por aqui, um pouco menos de gasto público por ali e “voila”: A sua obra estará concluída.

Quando o calendário marque um qualquer dia do ano 2014, mas as nossas vidas tiverem retrocedido até finais dos anos setenta, decretarão o fim da crise e escutaremos na rádio as condições da nossa rendição.”

*Texto de Concha Caballero, publicado em El País, edição da Andaluzia, de 18/1/2013 

 

Oficiais querem refletir sobre a revolução*

 

Os portugueses, e não só os militares, têm direito constitucional à resistência, diz em jeito de alerta a Associação de Oficiais das Forças Armadas.

Revolução foi a palavra que mais se ouviu esta tarde na conferência de imprensa promovida pela Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA), para dizer que os militares estão fartos da política de austeridade imposta pelo Governo.

"Não vamos fazer nenhuma revolução. As revoluções não se anunciam, fazem-se", disse aos jornalistas o presidente da associação, coronel Pereira Cracel.

 

"Portugal está a ser governado por um conjunto de pessoas que parece não perceber para onde nos estão a levar. Esta gente está a fazer pouco de todos nós", acrescentou o líder da AOFA, atualmente na situação de reserva.

 

Logo a seguir, o coronel Jara Franco, vogal da direção, fez questão de lembrar que, de acordo com o artigo 21 da Constituição, os portugueses, e não só os militares, têm direito à resistência. "Os portugueses estão a ser cozidos dentro de uma panela. E se para nos libertarmos tivermos de queimar o cozinheiro, o problema é dele!", afirma este militar recorrendo a uma linguagem metafórica.


"Não podemos passar o resto da vida a condenar metade da população, sobretudo os idosos, a comer cerelac. Nós jurámos defender a pátria e os portugueses", acrescentou o militar que está na reserva.

Jara Franco disse ainda que há majores e coronéis que residem na zona de Lisboa e trabalham na base do Montijo, que não vêm a casa durante a semana "para não pagarem a gasolina e as portagens e porque têm a alimentação e o banho oferecidos".

 

Mais à frente, o almirante Castanho Paes, presidente da mesa da assembleia geral da AOFA, garantiu que "a legião de descontentes contra o estado a que chegámos (a conhecida expressão do capitão de Abril, Salgueiro Maia, por diversas vezes citada na conferência de imprensa), está a crescer".

 

"Está certo que a viúva de um militar tenha de deixar a casa onde sempre viveu por não poder pagar a renda?", questionou o almirante já reformado, visivelmente emocionado e indignado. "A grande revolução seria a força da razão prevalecer sobre a razão da força", defendeu.

 

No encontro com os jornalistas foi anunciada a marcação de uma reunião de oficiais para o próximo dia 22 de fevereiro, em local e hora ainda a designar, onde "farão uma reflexão coletiva" sobre o que poderão os militares fazer para alterar o rumo do país.



*Notícia retirada do jornal Expresso, de 23/1/2014

sábado, 18 de janeiro de 2014

Os três textos que abaixo se transcrevem têm como tema comum o Equador, sob a presidência de Rafael Correa.
Pareceu-nos importante mostrar que:
1. nem todos os economistas são uns vendidos;
2. há políticos patriotas;
3. os povos europeus, ou porque desinformados, ou porque não conseguem despojar-se da mentalidade de colonizador, julgando-se gente superior, não são capazes de aprender com aqueles que se libertaram do jugo colonialista e do capitalismo depredador, acabando por cair na mesma situação.

 ººººººº
 
O artigo abaixo, do jornalista Mark Weisbrot, foi publicado originalmente no Guardian. Hoje, Correa tomou posse para seu terceiro mandato consecutivo.*

Rafael Correa terá mais quatro anos no poder. Não é difícil entender os motivos.
O desemprego caiu para 4,1% no final do ano passado – a menor taxa nos últimos vinte e cinco anos. A pobreza diminuiu 27% desde 2006. Os gastos em educação mais que dobraram em termos reais.
Um maior investimento em saúde ampliou o acesso da população aos cuidados médicos. Outras despesas sociais também se ampliaram substancialmente, incluído o subsídio do governo à aquisição da casa própria.
Isso pode parecer insustentável, mas não é. O pagamento dos juros da dívida externa do Equador é menos de 1% do PIB, o que é muito pouco; e a dívida pública do país é 25% do PIB, o que também é bem pouco.
A revista Economist, que não aprecia muito os governos de esquerda da grande maioria dos países da América do Sul, atribui o sucesso de Correa a “uma mistura de sorte, oportunismo e habilidade”, mas foi a habilidade que realmente fez a diferença.
Correa pode ter tido sorte, mas não foi boa sorte: ele tomou posse em janeiro de 2007 e no ano seguinte o Equador foi um dos países mais afetados na região pela crise financeira internacional.
Isto porque havia uma forte dependência de recursos enviados do exterior (por exemplo, de trabalhadores nos Estados Unidos e na Espanha) e das exportações de petróleo, que respondiam por 62% das receitas de exportação e 34% da arrecadação do governo naquele momento.
O preço do petróleo caiu 79% em 2008 e o envio do dinheiro de fora também se reduziu drasticamente. O efeito disso tudo na economia do Equador foi comparável ao colapso do crédito imobiliário americano, que tanto contribuiu para a grande recessão mundial.
E o Equador também teve o azar de não possuir sua própria moeda (o dólar americano fora adotado em 2000), o que significa que o país não podia sequer imprimir dinheiro para enfrentar a recessão.
A tempestade durou nove meses. Um ano depois, as coisas estavam de volta ao lugar, e Correa se transformou num dos presidentes mais populares do hemisfério.
Como isso aconteceu? Provavelmente o fator mais importante foi um grande estímulo fiscal em 2009, na casa de 5% do PIB (muito mais do que foi feito nos Estados Unidos).
O governo também reformou e regulou o sistema financeiro. E aqui nós chegamos ao que é, provavelmente, a mais competente reforma financeira de qualquer país no século XXI.
O governo tomou o controle do banco central e o forçou a trazer de volta cerca de dois bilhões de reservas que estavam no exterior. O dinheiro foi usado pelos bancos públicos para fazer empréstimos  que beneficiaram a infraestrutura, o setor de construção e a agricultura.
O dinheiro que estava deixando o país foi taxado e os bancos foram obrigados a manter 60% do seu patrimônio líquido no país. Isso levou as taxas de juros para baixo.
O governo renegociou contratos com companhias de petróleo estrangeiras quando os preços aumentaram. As receitas governamentais aumentaram de 27% do PIB em 2006 para mais de 40% no ano passado
O objetivo de todas as alteração foi dar ao sistema financeiro um caráter de interesse público, ao contrário do que acontece em países como os Estados Unidos.
Para que isso acontecesse, o governo também separou o setor financeiro da mídia – os bancos eram proprietários da maior parte das empresas jornalísticas antes da eleição de Correa – e criou leis contra monopólios.
A visão convencional é que práticas “antinegócios”, como a renegociação dos contratos de petróleo e a ampliação da autoridade do governo, são um caminho seguro para um desastre econômico.
O Equador também deixou de pagar um terço de sua dívida externa depois que uma comissão internacional concluiu que aquela porção tinha origem ilegal. E a “independência” do Banco Central que o Equador revogou é considerada sagrada pela maioria dos economistas.
Mas Correa, um economista com Ph.D., soube escolher o momento certo para ignorar a maior parte de seus colegas.
Correa sofre críticas da mídia por ir contra a sabedoria convencional e – provavelmente o maior pecado aos olhos da imprensa da negócios – ter sucesso.  A maior agressão da mídia veio quando o Equador ofereceu asilo ao jornalista Julian Assange, do Wikileaks.
Mas aqui, como na política econômica e na reforma financeira, Correa estava certo.
Era óbvio, especialmente depois que o governo britânico fez uma ameaça sem precedentes de invadir a embaixada equatoriana, que se tratava de perseguição política.
É raro, e animador, ver um político enfrentar tão firmemente forças tão poderosas – os Estados Unidos e seus aliados na Europa e na mídia internacional – em nome de um princípio. Mas a tenacidade e a coragem de Correa fizeram muito bem ao seu país.

* Texto retirado de www.diariodocentrodomundo.com.br, 24/5/2013

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Ver em www.rebela.edugraf.ufsc.br  (Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos), A


Revolução Cidadã: o governo Rafael Correa e os movimentos sociais no Equador,

de Gustavo Menon


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A Europa está a reproduzir os nossos erros


Nos anos 1970, os países latino-americanos entraram em uma situação de endividamento exterior intensivo. A história afirma que essa conjuntura foi provocada por políticas de governos “irresponsáveis” e por desequilíbrios em razão de um modelo de desenvolvimento adotado no pós-guerra: a criação de uma indústria que pudesse produzir localmente os produtos importados, ou “industrialização por substituição das importações”.  Por Rafael Correa*

Esse endividamento intensivo foi, na verdade, promovido – e até mesmo imposto – pelos órgãos financeiros internacionais. Sua lógica pregava que, graças ao financiamento de projetos de alta rentabilidade, que abundavam na época nos países do Terceiro Mundo, chegaríamos ao desenvolvimento, enquanto a renda desses investimentos permitiria o reembolso das dívidas contratadas.
Isso aconteceu até o dia 13 de agosto de 1982, quando o México se declarou incapaz de reembolsar a dívida. A partir daí, toda a América Latina sofreu a suspensão dos empréstimos internacionais e ao mesmo tempo o aumento brutal das taxas de juros de sua dívida. Empréstimos que tinham sido contratados a 4% ou 6%, mas com taxas variáveis, de repente atingiram os 20%. Mark Twain dizia: “Um banqueiro é alguém que lhe empresta um guarda-chuva quando o dia está ensolarado e o pega de volta assim que começa a chover...”.
Foi assim que a nossa “crise da dívida” começou. Durante a década de 1980, a América Latina operou para seus credores uma transferência líquida de recursos de US$ 195 bilhões (quase US$ 554 bilhões em valores atuais). Contudo, nesse período, a dívida externa da região passou de US$ 223 bilhões em 1980 para US$ 443 bilhões em 1991! Não por causa de novos créditos, mas da rolagem da dívida e do acúmulo de juros.

Assim, o subcontinente viu a década de 1980 acabar com os mesmos níveis de renda por habitante que o meio dos anos 1970. Fala-se de uma “década perdida” para o desenvolvimento. Na realidade, perdida foi toda uma geração.

Ainda que as responsabilidades tenham sido divididas, os países centrais, as burocracias internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), assim como os bancos privados internacionais, resumiram a dificuldade a um problema de superendividamento dos Estados (overborrowing). Eles nunca assumiram seu próprio papel na concessão de créditos acordados de maneira irresponsável (overlending), sua contrapartida.

As graves crises orçamentárias e de endividamento externo geradas pela transferência líquida de recursos da América Latina para seus credores levaram um grande número de países da região a redigir “cartas de intenção” ditadas pelo FMI. Esses acordos cheios de obrigações permitiam a obtenção de empréstimos junto ao órgão, assim como uma caução na renegociação das dívidas bilaterais com os países credores, reunidos no Clube de Paris.

Carência de dirigentes e de ideias

Esses programas de ajuste estrutural e de estabilização impuseram as receitas de sempre: austeridade orçamentária, aumento dos preços dos serviços públicos, privatizações etc. Tantas medidas com as quais não se procurava sair o mais rápido possível da crise nem aumentar o crescimento ou a criação de empregos, mas garantir o reembolso das dívidas para os bancos privados. No final das contas, os países em questão continuavam endividados não mais junto a esses estabelecimentos, mas perante os órgãos financeiros internacionais, que protegiam os interesses dos bancos.

No início dos anos 1980, um novo modelo de desenvolvimento começou a se impor na América Latina e no mundo: o neoliberalismo. Esse novo “consenso” sobre a estratégia de desenvolvimento foi apelidado “consenso de Washington”, já que seus principais criadores e promotores eram os órgãos financeiros multilaterais, cuja sede ficava em Washington, como o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, por exemplo. Segundo a lógica em voga, a crise na América Latina se devia a uma intervenção excessiva do Estado na economia, à ausência de um sistema adequado de preços livres e ao distanciamento dos mercados internacionais – ficando entendido que essas características eram decorrentes do modelo latino-americano de industrialização por substituição das importações.

Consequência de uma campanha de marketing ideológico sem precedentes maquiada de pesquisa científica, assim como de pressões diretas exercidas pelo FMI e pelo Banco Mundial, a região passou de um extremo ao outro: da desconfiança em relação ao mercado e da confiança excessiva no Estado à livre-troca, à desregulamentação e às privatizações.

A crise não foi apenas econômica; ela resultou de uma carência de dirigentes e de ideias. Tivemos medo de pensar por nós mesmos e aceitamos de maneira tão passiva quanto absurda os ditames estrangeiros.

A descrição da crise atravessou o Equador e será sem dúvida familiar a muitos europeus. A União Europeia sofre de um endividamento produzido e agravado pelo fundamentalismo neoliberal. Sempre respeitando a soberania e a independência de cada região do mundo, nos surpreendemos ao constatar que a Europa, tão esclarecida, está repetindo nos mínimos detalhes os erros cometidos ontem pela América Latina.

Os bancos europeus emprestaram à Grécia sem querer ver que o déficit orçamentário do país era quase três vezes superior ao declarado pelo Estado. Mais uma vez aparece o problema de um superendividamento sobre o qual se omite a evocação da contrapartida: o excesso de crédito. Como se o capital financeiro nunca tivesse a menor responsabilidade.

De 2010 a 2012, o desemprego atingiu níveis alarmantes na Europa. Entre 2009 e 2012, países como Portugal, Itália, Grécia, Irlanda e Espanha reduziram suas despesas orçamentárias em média em 6,4%, prejudicando gravemente os serviços de saúde e educação. Justifica-se essa política pela escassez de recursos; mas somas consideráveis foram liberadas para dar ânimo ao setor financeiro. Em Portugal, na Grécia e na Irlanda, os valores dessa “salvação bancária” ultrapassaram o total dos salários anuais.

Enquanto a crise se abate duramente sobre os povos europeus, continua-se a lhes impor as receitas que fracassaram em todo o mundo.

Tomemos o exemplo do Chipre. Como sempre, o problema começa com a desregulamentação do setor financeiro. Em 2012, sua má gestão se tornou insustentável. Os bancos cipriotas, o Banco de Chipre e o Banco Laiki em particular, tinham concedido à Grécia empréstimos privados por um valor superior ao PIB cipriota. Em abril de 2013, a Troika – FMI, Banco Central Europeu (BCE) e Comissão Europeia – propôs um “resgate” de 10 bilhões de euros. Ela condicionou este a um programa de ajuste que incluía a redução do setor público, a supressão do sistema de aposentadoria por repartição para os novos funcionários, a privatização das empresas públicas estratégicas, medidas de ajuste orçamentário até 2018, a limitação dos gastos sociais e a criação de um “fundo de resgate financeiro” cujo objetivo era apoiar os bancos e resolver seus problemas, além do congelamento dos depósitos superiores a 100 mil euros.

Ninguém duvida que reformas sejam necessárias nem que é preciso corrigir os erros graves, incluindo os originais: a União Europeia integrou países com diferenciais de produtividade muito importantes que os salários nacionais não refletiam. E finalmente, no essencial, as políticas praticadas não procuram acabar com a crise com menos custos para os cidadãos europeus, mas sim garantir o pagamento da dívida aos bancos privados.

Nós evocamos os países endividados. O que acontece com as pessoas incapazes de reembolsar suas dívidas? Tomemos o caso da Espanha. A falta de regulamentação e o acesso fácil demais ao dinheiro dos bancos espanhóis geraram uma imensa quantidade de créditos hipotecários, que galvanizaram a especulação imobiliária. Os próprios bancos procuravam os clientes, estimavam o preço de sua residência e lhes emprestavam sempre mais para a compra de um carro, móveis, eletrodomésticos etc.1

Quando a bolha imobiliária estourou, o bem-intencionado devedor não podia mais pagar seu empréstimo: não tinha mais emprego. Tomaram sua casa, mas esta valia muito menos do que quando ele a havia comprado. Sua família se encontrou na rua e endividada até o fim da vida. Em 2012, recensearam a cada dia mais de duzentas expulsões, o que explicou grande parte dos suicídios na Espanha...

Uma questão se levanta: por que não recorremos a remédios que parecem evidentes e repetimos sempre a pior história? Porque o problema não é técnico, mas político. Ele é determinado por uma relação de força. Quem dirige nossas sociedades? Os humanos ou o capital?

O maior erro que se fez à economia foi tê-la subtraído de sua natureza original de economia política. Ainda querem nos fazer crer que tudo é técnico; disfarçaram a ideologia de ciência e, ao nos encorajarem a abstrair as relações de força no seio de uma sociedade, nos colocaram todos a serviço dos poderes dominantes, daquilo que eu chamo de “império do capital”.

A estratégia do endividamento intensivo que provocou a crise da dívida latino-americana não visava ajudar nossos países a se desenvolver. Ela obedecia à urgência de aplicar o excesso de dinheiro que inundava os mercados financeiros do “Primeiro Mundo”, os petrodólares que os países árabes produtores de petróleo tinham aplicado nos bancos dos países desenvolvidos. Essas somas provinham da alta do preço do petróleo consecutiva à guerra de outubro de 1973, tendo sido esses preços mantidos a níveis elevados pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). Entre 1975 e 1980, os depósitos nos bancos internacionais passaram de US$ 82 bilhões para US$ 440 bilhões (US$ 1,226 trilhão atuais).

Diante da necessidade de aplicar quantias de dinheiro tão consideráveis, o “Terceiro Mundo” se tornou um merecedor de crédito. Assim, começaram a ver desfilar, a partir de 1975, banqueiros internacionais desejosos de propor qualquer tipo de crédito – inclusive para financiar despesas correntes e a aquisição de armas pelas ditaduras militares que governavam diversos Estados. Esses banqueiros zelosos, que nunca tinham vindo à região nem sequer como turistas, também trouxeram grandes malas com subornos destinados a funcionários públicos, a fim de fazê-los aceitar novos empréstimos qualquer que fosse o pretexto. Ao mesmo tempo, os órgãos financeiros internacionais e as agências de desenvolvimento continuaram a vender a ideia segundo a qual a solução era se endividar.

Ideologia disfarçada de ciência

Mesmo que a autonomia dos bancos centrais sirva para garantir a continuidade do sistema, independentemente do veredicto das urnas, ela foi imposta como uma necessidade “técnica” no início dos anos 1990, justificada por estudos ditos empíricos que demonstravam que tal dispositivo gerava melhores performances macroeconômicas. Segundo essas “pesquisas”, os bancos centrais independentes poderiam agir de forma “técnica”, distante das pressões políticas perniciosas. Com base em um argumento tão absurdo, seria preciso também tornar o ministério da Fazenda autônomo, já que a política orçamentária deveria ser puramente “técnica”. Como sugeriu Ronald Coase, ganhador do prêmio do Banco Real da Suécia em ciências econômicas em memória de Alfred Nobel, os resultados desses estudos se explicavam: os dados tinham sido torturados até dizerem o que queriam que eles dissessem.

No período que precedeu a crise, os bancos centrais autônomos se consagraram exclusivamente a manter a estabilidade monetária, quer dizer, controlar a inflação, a despeito do fato de que bancos centrais tinham tido um papel fundamental no desenvolvimento de países como o Japão e a Coreia do Sul. Até os anos 1970, o objetivo fundamental do Federal Reserve era favorecer a criação de empregos e o crescimento econômico; foi somente com as pressões inflacionárias do início dos anos 1970 que o objetivo de promover a estabilidade dos preços foi adicionado.

A prioridade dada à estabilização dos preços significou também, na prática, o abandono das políticas que visavam manter o pleno emprego dos recursos na economia. A ponto de, em vez de atenuar os episódios de recessão e desemprego, a política orçamentária, ao comprimir sem parar as despesas, veio a agravá-los.

Os bancos centrais ditos “independentes” que se preocupam unicamente com a estabilidade monetária fazem parte do problema, não da solução. Eles são um dos fatores que impedem a Europa de sair mais rapidamente da crise.

As capacidades europeias, no entanto, estão intactas. A Europa dispõe de tudo: talento humano, recursos produtivos, tecnologia. Eu acredito que é preciso tirar conclusões fortes: trata-se aqui de um problema de coordenação social. Por outro lado, as relações de poder no interior dos países europeus e no nível internacional são todas favoráveis ao capital, sobretudo financeiro, razão pela qual as políticas são aplicadas de modo contrário ao que seria socialmente desejável.

Espancados pela dita ciência econômica e pelas burocracias internacionais, muitos cidadãos estão convencidos de que não há “alternativa”. Estão enganados.

Obs: Por ocasião de uma conferência na Sorbonne em 6 de novembro de 2013, o presidente equatoriano Rafael Correa interpelou os colegas europeus a respeito de sua gestão da crise da dívida. Esta seria caracterizada por uma só obsessão: garantir os interesses das finanças. O texto acima é um exposição do presidente equatoriano em um síntese de sua reflexão, conforme informa o lead da matéria no Le Monde Diplomatique, Janeiro 2014

*Rafael Correa é presidente da República do Equador, doutor em Economia e autor da obra De la République bananière à la non-Republique (Da República das Bananas à não República}, Utopia, Paris, 2013.
 

 

 

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014


 
UMA DAS MIL RAZÕES PARA ESTARMOS INDIGNADOS
Por Vicenç Navarro*
 

Se o leitor não se sente indignado é porque não sabe o que está a acontecer no seu país. É consciente, contudo, de que a situação económica e social do país não vai bem. Na realidade, vai mesmo muito mal. O desemprego alcançou níveis recorde, na União Europeia e em Espanha. E as agências internacionais mais fiáveis dizem que a economía espanhola não alcançará, nos próximos vinte anos, os níveis de desemprego que tinha antes do início da crise (sim, leu bem, vinte anos, a partir de agora). E já que o desemprego juvenil é o dobro do geral, estes prognósticos querem dizer que estamos a queimar o nosso futuro, pois muitas gerações de jovens estarão numa situação desesperada, tendo sido convertidas a inúteis .Esta situação dos jovens está a afectar, do mesmo modo negativo, o futuro da Segurança Social, contradizendo, claramente, o famoso argumento de que o problema das pensões é o de haver demasiados velhos e muito poucos jovens. A falácia deste argumento fica claramente à vista com a crise actual. O problema das pensões não é o de não haver jovens, mas o de que não há trabalho para eles. Este é o problema que o famoso argumento catastrofista, baseado na transição demográfica, oculta.

Esta crise foi a consequência das políticas públicas levadas a cabo por governos sob o mandato de instituições altamente influenciadas pela banca, como o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional. Digo-o eu, que sou catedrático de Políticas Públicas e já vi muitos casos antes, noutros continentes, que experimentaram crises muito semelhantes. Na realidade, nos fins do séc. XX, a América Latina sofreu uma situação muito parecida.

Estes bancos, que têm uma enorme influência política (muito, mas muito marcada em Espanha, onde o governo Rajoy é um mero instrumento da banca), estão a forçar e a impor políticas que são a causa da crise. Cito apenas um pormenor: o governo Rajoy está a cortar e a desmantelar o Estado de bem-estar de Espanha (o mesmo acontece, na Catalunha, com o governo de Artur Mas), cortando e cortando gastos e emprego público, com o fim de reduzir o défice e a dívida pública. Estes cortes contribuem para destruir emprego e diminuir a procura que deveria estimular a economía.

Ora, apesar dos cortes, a dívida pública espanhola continua a subir e a subir, ascendendo já a 664.000 milhões de euros (o que é muito dinheiro!). O leitor e eu pagamos os juros desta dívida, que representa já o segundo item do orçamento de Estado, a seguir à Segurança Social. Este dinheiro, seu e meu, vai para os bancos que compraram esta dívida. Hoje, os bancos espanhóis têm quase metade da dívida, 299.000 milhões (2). A pergunta a fazer é: Onde vai o banco buscar o dinheiro para comprar a dívida? Pois veja bem, por muito que o surpreenda vai buscá-lo aos empréstimos públicos!  Todos os anos os bancos espanhóis pedem dinheiro emprestado ao Banco Central Europeu, BCE, uma instituição pública (que, na realidade, não funciona como banco central, mas como lobby da banca) a juros baixíssimos, menos de 1%. O BCE empresta esse dinheiro para que os bancos o emprestem a si, a mim, às pequenas e médias empresas, para, desse modo, se resolver o enorme problema da falta de crédito que tem paralisado a economia. Não sei se o leitor já tentou conseguir um empréstimo junto da banca. Se o tentar, verá que não é fácil. E, por que razão não é fácil, se ela recebeu tanto dinheiro do BCE?

A resposta não é difícil de perceber. Os bancos ganham muito mais dinheiro a comprar dívida pública, com juros muito altos (que o discurso oficial explica com o facto de o Estado necessitar oferecer esses juros para conseguir que os bancos lhe emprestem o dinheiro), de 4%, 6%, inclusive 13%. Imagine-se o maná que significa receberem dinheiro a menos de 1% e, com ele, comprarem bónus que lhes rendem uma quantidade muitas vezes maior do que aquela pedida emprestada ao BCE. Está a perceber? E saiba o leitor que os banqueiros, em Espanha, estão entre os mais bem pagos da União Europeia. E os bancos mais importantes de Espanha têm sido das empresas com maiores lucros. Se, depois de ter lido tudo isto, não ficou indignado, é que não me expliquei bem.

Mas, se me fiz entender, prepare-se, então, para aumentar o seu nível de indignação, visto que tudo isto é totalmente desnecessário. Este enorme sofrimento, incluído o elevado desemprego, é inteiramente evitável. É, repito, desnecessário e prejudicial, existindo única e exclusivamente para benefício, principalmente, da banca. A solução para esta situação é extremamente fácil: o BCE deveria emprestar o mesmo dinheiro, não à banca privada, mas aos Estados, deixando que estes o oferecessem a si, a mim, às pequenas e médias empresas, à mesma taxa de juro que o Estado paga pelo que recebe do BCE. Repare como é fácil!

E o leitor perguntará: E por que é que não se faz assim? Pois, porque a banca tem um enorme poder sobre o BCE, sobre as instituições que governam a Zona Euro, sobre o governo espanhol e, não esqueça, sobre os meios de informação e persuasão. E um exemplo disso é o de que este artigo que está a ler não se publicará em nenhum dos cinco jornais mais importantes do país. Daí que eu lhe sugira que o distribua amplamente entre os seus amigos e familiares, porque a escassíssima democracia que temos tem que mudar e isso só começará quando existir uma cidadania informada, que é o que não temos.


*Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universidade Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha). Foi Catedrático de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona. É professor de Políticas Públicas na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, EUA), onde exerceu docência durante 35 anos. Dirige o Programa em Políticas Públicas e Sociais patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e pela Universidade Johns Hopkins. Dirige o Observatório Social de Espanha.

Os seus textos podem ser encontrados em www.vnavarro.org
 
Notas do tradutor:

(1) Onde se lê Espanha, Rajoy, Artur Mas, bancos espanhóis, leia-se, igualmente, Portugal, Passos Coelho, Alberto João Jardim, bancos portugueses.

(2) Em Setembro de 2011, o BCP, O BES e o BPI detinham mais de metade da dívida portuguesa. Ver Francisco Louçã e Mariana Mortágua, A Dividadura, Bertrand Editora, 2012

 

 

domingo, 12 de janeiro de 2014

"En cualquier sociedad atravesada de desigualdades, el poder que unos seres humanos ejercen sobre otros seres humanos necesita, para asentarse y ser estable, otras razones que las de los meros hechos. Las pendientes, cuando son abruptas, necesitan asideros para ser transitables. Esos asideros están trenzados con palabras."

in Juan Carlos Monedero, EL GOBIERNO DE LAS PALABRAS, Política para tiempos de confusión, ed. Fondo de Cultura Económica, 2011

Sítio do autor:www.juancarlosmonedero.org