Brancos, ricos e perigosos
Por António Santos
Em
jargão policial estado-unidense, «não há nada que permita ligar este tiroteio
ao terrorismo» quer apenas dizer «não há provas de que o atirador fosse
muçulmano». Arrumações casuísticas à parte, o ataque indiscriminado que este
domingo fez 59 mortos e cinco centenas de feridos num concerto em Las Vegas
entra para a tétrica contabilidade dos tiroteios americanos como um dos mais
mortíferos da história moderna dos EUA, somente atrás do massacre de nativos em
Wounded Knee (quase 300 mortos) e da repressão dos mineiros em greve de Blair
(cerca de 100 mortos).
E,
estranhamente, o que nesta chacina inspira terror é justamente o que, para a
Casa Branca, exclui a classificação de terrorismo: a inquietante possibilidade
de Stephen Paddock, um discreto milionário de 64 anos, ter acordado um dia e
decidido fazer chover milhares de balas sobre uma multidão de desconhecidos. Só
porque sim. Como James Holmes, o brilhante estudante de neurociências, numa
sala de cinema, ou Adam Lanza, o tímido jovem de um subúrbio rico, numa escola
primária.
Não,
não estamos a falar de um ou dois «loucos» nem de, como se lhes convencionou
chamar, «lobos solitários». O Congresso dos EUA define um «tiroteio em massa» como
um ataque com arma de fogo contra pelo menos quatro pessoas seleccionadas
aleatoriamente. Nos EUA houve 1515 ataques deste tipo nos últimos 1735 dias. Só
em 2016, foram 383 tiroteios, mais do que um por dia, contra vítimas
aleatórias, fazendo mais de 15 mil mortos num só ano. No que já vai de 2017, as
estatísticas não são menos sombrias: 273 tiroteios em massa, quase todos sem
razão aparente e levados a cabo por «lobos solitários». A questão é que 275
«lobos solitários» são uma alcateia.
Alcateia de humanos solitários
Segundo
o site de informação Mother Jones, mais de metade dos autores
dos tiroteios em massa encaixa-se numa estreita cofragem demográfica: homens,
brancos e com rendimentos acima da média. Deveria Trump proibir a entrada nos
EUA, à guisa do que tem feito com algumas nacionalidades, das pessoas que se
encaixem neste molde? É claro que não. E ainda assim, este é um elemento
central para um debate urgente sobre a saúde pública, o uso e porte de armas, a
decadência cultural do capitalismo e a guerra imperialista.
Nos
EUA, a guerra imperialista é uma constante ininterrupta há mais de 70 anos.
Todas as gerações de estado-unidenses vivos têm uma relação pessoal ou familiar
com a invasão e ocupação de outros países do mundo. Vietname, Coreia, Colômbia,
Iraque, Afeganistão… a lista é infinitamente traumática e faz-se ao som de
bombas, tiros, gritos e choros.
O
preço psicológico da participação, prolongada e massiva, da sociedade
estado-unidense neste dilatado crime de guerra foi uma patologia social, como
que um «stress pós-traumático em massa» cujos sintomas mais visíveis são o
culto da violência e a insensibilidade perante o sofrimento alheio. Juntemos a
completa ausência de cuidados de saúde mental, 89 armas por cada 100 habitantes
e a mais alta taxa de homicídios da OCDE e temos um explosivo nas mãos. O
rastilho é o individualismo patológico: a ideia de que são ricos todos os que
trabalharam para merecê-lo ou são suficientemente inteligentes e que, do outro
lado do espelho, os pobres merecem o desprezo dos ricos e o ódio de si
próprios. Quem atomiza uma sociedade, desligando o indivíduo do colectivo, faz
do ser humano um «lobo solitário». E de um país uma alcateia inteira.
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