Em Portugal, os partidos de esquerda, PCP e BE, apresentaram, em 2012, no Parlamento, propostas de renegociação e auditoria da dívida pública (Ver em http://www.cadpp.org/node/346 ), rejeitadas com os votos da direita, PS, PSD e CDS. Neste artigo de Eric Toussaint, o que é dito em relação à dívida da Grécia aplica-se, com poucas diferenças, à de Portugal. Um trabalho preliminar à auditoria da dívida portuguesa pode ser consultado aqui.
E se o Syriza pega na
palavra da EU e faz uma auditoria à dívida da Grécia?
Por Eric
Toussaint*
Desde o anúncio de eleições na Grécia, para o dia 25 de
Janeiro de 2015, a possibilidade de que o Syriza saia vitorioso das urnas e
forme governo tem sido apresentado à opinião pública internacional,
particularmente, à da eurozona, como uma ameaça. Contudo, aqueles que fazem
soar o alarme sabem perfeitamente que o Syriza anunciou que não suspenderá o
pagamento da dívida, nem sairé do euro, se chegar ao governo. O Syriza propõe
uma renegociação da dívida à escala europeia e deseja que a Grécia permaneça na
eurozona. Em contrapartida, o Syriza compromete-se a pôr fim às medidas de
austeridade, injustas e antissociais, implementadas pelos anteriores governos e
pela Troika.
Esta campanha sobre as supostas ameaças que o Syriza
representa pretende intimidar o eleitorado grego, com o objectivo de que
renuncie ao seu direito à mudança. De igual modo, pretende pôr uma parte da
opinião pública europeia contra a coligação de esquerda radical grega, para
tentar evitar que, a seguir, o Podemos, em Espanha, possa ganhar as eleições,
em Outubro de 2015.
A dívida reclamada à Grécia representa 175% da riqueza
produzida no país, num ano, e supõe um lastro insustentável para o povo heleno.
Que acontecerá se o Syriza, uma vez no governo, decida levar
à letra o artigo 7, de um regulamento adoptado, em Maio de 2013, pela União
Europeia, para os países submetidos a um plano de ajustamento estrutural? Eis o
texto completo do ponto 9, do citado artigo 7: “Um Estado membro, submetido a
um programa de ajustamento macro-económico, efectuará uma auditoria exaustiva
das suas finanças públicas, a fim de, entre outras coisas, avaliar as razões pelas
quais se incorreu em níveis excessivos de endividamento e detectar qualquer
possível irregularidade.” (1)
O governo de Antonis Samaras absteve-se de aplicar esta
disposição do regulamento, para ocultar à população grega os verdadeiros
motivos do aumento da dívida e as irregularidades correspondentes. Em Novembro
de 2012, o Parlamento, dominado pela direita, havia recusado a moção,
apresentada pelo Syriza, para a criação de uma comissão de investigação sobre a
dívida, com 167 votos contra, 119 a favor e nenhuma abstenção.
Está claro que, depois de uma vitória eleitoral do Syriza, o
governo que se forme sob a sua liderança poderia, perfeitamente, pegar na
palavra da União Europeia, ao constituir uma comissão de auditoria à dívida
(com participação cidadã), com o propósito de analisar o processo de
endividamento excessivo da Grécia, para revelar as possíveis irregularidades e
identificar as partes que forem ilegais, ilegítimas, odiosas… dessa dívida.
Alguns
elementos-chave que a realização da auditoria poderia trazer à luz:
A dívida grega, que representa 113% do PIB, em 2009, antes
do rebentar da crise no país e da intervenção da Troika, que possui 4/5 dessa
dívida, passou para 175% do PIB, em 2014. Portanto, à intervenção da Troika
seguiu-se um forte aumento da dívida grega.
A partir de 2010 e até 2012, os créditos concedidos pela
Troika à Grécia serviram, em grande parte, para reembolsar, durante esse
período, os credores, a saber, os bancos comerciais das principais economias da
EU, começando pelas entidades alemãs e francesas (2). Cerca de 80% da dívida
grega, em 2009, estava nas mãos de bancos comerciais de países da EU. Entre
eles, só os bancos alemães e franceses tinham cerca de 50% do total dos títulos
públicos gregos.
Uma auditoria da dívida grega mostrará que os bancos
comerciais europeus aumentaram intensamente os seus créditos à Grécia, entre
finais de 2005 e 2009 (os créditos foram incrementados em mais de 60 mil
milhões de euros, passando de 80 mil milhões para 140 mil milhões), sem
considerarem a capacidade da Grécia para os devolver. Os bancos actuaram de
maneira temerária, convencidos de que as autoridades europeias viriam em seu
auxílio, em caso de problema.
A auditoria da dívida grega mostrará que o pressuposto plano
de resgate à Grécia, posto em prática pelas autoridades europeias com a ajuda
do FMI, permitiu, na realidade, que os bancos de alguns países europeus, com
peso decisivo nas instâncias europeias, continuem a receber os reembolsos da
Grécia, transferindo o risco para os Estados, através da Troika. Não foi a
Grécia a resgatada, mas um punhado de grandes bancos comerciais europeus,
implantados principalmente nos países mais fortes da EU.
A auditoria analisará a legitimidade do plano de resgate.
Estará ele conforme com os tratados da EU (principalmente o artigo 125, que
proíbe um Estado-membro encarregar-se dos compromissos financeiros de outros
Estados-membro)? Os prestamistas públicos, em 2010 (isto é, os 14 Estados-membro
que concederam empréstimos à Grécia, num total de 53 mil milhões de euros, o
FMI, o BCE, a Comissão Europeia, etc.) respeitaram o princípio de autonomia da
vontade de quem pede emprestado, a saber, a Grécia? Ou beneficiaram-se da sua
angústia perante os ataques especulativos dos mercados financeiros, para lhe
impor contratos que vão contra o seu próprio interesse? Estes prestamistas
impuseram condições leoninas, sobretudo ao exigir taxas de juro exageradas? (3)
Trata-se, por isso, de auditar a acção do FMI. Sabemos que,
no seio da direção do Fundo, vários directores executivos (em especial, o do
Brasil e o da Suíça) mostraram grandes reservas quanto ao empréstimo acordado
pelo FMI, afirmando, sobretudo, que a Grécia não seria capaz de o devolver,
dadas as políticas que lhe eram impostas. (4)
Ultrapassou o BCE, de
maneira grave, as prerrogativas, ao exigir ao Parlamento grego que legislasse
sobre o direito de greve e a fixação dos níveis salariais?
Em Março de 2012, a Troika organizou uma reestruturação da
dívida grega, que foi apresentada, na altura, como um êxito. Recordemos que o
então primeiro-ministro Yorgos Papandreu anunciou, no início de Novembro de
2011, na véspera de uma reunião do G-20, a sua intenção de convocar um
referendo, para Fevereiro de 2012, sobre essa reestruturação da dívida,
preparada pela Troika. Perante a pressão desta, esse referendo jamais teve
lugar e retirou-se o direito ao povo grego de se prenunciar sobre as novas
dívidas. Os grandes meios de comunicação fizeram eco do discurso de que a
reestruturação permitia reduzir a dívida grega em 50%. Na realidade, esta
dívida é maior em 2015 do que em 2011, o ano prévio à grande anulação dos
supostos 50%. A auditoria mostrará que esta operação de reestruturação, que
constitui uma vasta fraude, estava vinculada ao aprofundamento das políticas
contrárias ao interesse da Grécia e da sua população.
A auditoria deverá avaliar se as estritas condições impostas
pela Troika à Grécia, como contrapartida dos créditos, constitui uma violação
de uma séria de tratados e convenções, que têm de ser respeitados, tanto pelos
credores, como pelo devedor, a Grécia. O professor de Direito,
Andreas-Fischer-Lescano, representando a Câmara de Trabalho de Viena,
demonstrou, de modo irrefutável, que os programas da troika são ilegais à luz
do direito europeu e do direito internacional. As medidas definidas nos
programas de ajustamento, a que a Grécia foi submetida, e as políticas
concretas, que são consequência directa disso, violam uma série de direitos
fundamentais, como o direito à saúde, à educação, à habitação, à Segurança Social,
a um salário justo, mas também à liberdade de associação e à negociação
colectiva. Todos estes direitos estão protegidos por numerosos textos jurídicos
à escala internacional e europeia, como a Carta dos Direitos Fundamentais da
União Europeia, o Convénio Europeu dos Direitos Humanos, a Carta Social
Europeia, os dois pactos da ONU sobre Direitos Humanos, a Carta das Nações
Unidas…
A auditoria deverá demonstrar que as medidas ditadas pelos
credores constituem regressões manifestas ao exercício dos direitos humanos
fundamentais e uma violação flagrante de uma série de tratados. Podem ser
identificadas importantes irregularidades. Consequentemente, a comissão
encarregada da auditoria poderá emitir uma opinião argumentada acerca da
legalidade, da ilegitimidade e, inclusive, da nulidade da dívida contratada
pela Grécia com a Troika.
(3)
As taxas de juro exigidas, que eram de 4% a
5,5%, em 2010-2011, foram reduzidas para cerca de 1%, em 2012, perante os protestos
surgidos em diferentes lugares (incluindo o governo irlandês, ao qual foi
imposto, também, uma taxa de juro muito elevada, no final de 2010). Ao reduzir
consideravelmente as taxas de juro, os 14 Estados reconheceram, de facto, que
as taxas anteriormente exigidas eram exageradas. Em 2010-2011, os juros pagos
pela Grécia à França elevaram-se a 437 milhões de euros. Ver http://www.assemblee-nationale.fr/13/pdf/rapports/r2857-tI.pdf
*Doctor em
Ciências Políticas; Porta-voz do CADTM internacional; Auditor da dívida do Equador em 2007-2008.
Autor de Bancocracia.
Texto original
publicado em 12.01.15, no Público.es