Os meios de comunicação
social ignoraram o discurso do presidente russo, Putin, proferido a 24 de
Outubro deste ano, no XI Encontro Internacional de Valdai, subordinado ao tema “A
Ordem Mundial: Novas Regras ou um Jogo sem Regras”.
Por esta razão, e
apesar de não termos especial simpatia pelo personagem, decidimos traduzir e
divulgar o seu discurso, pelo diagnóstico realista que faz da actual situação
mundial.
O texto original, em
russo, e a sua tradução em inglês podem ser consultados na página da
presidência russa: http://eng.kremlin.ru/news/23137
A nossa tradução foi
feita a partir da tradução para espanhol, revista e corrigida pelo politólogo e sociólogo
argentino Atílio Boron e que se pode encontrar no seu blogue: http://www.atilioboron.com.ar/2014/11/26.html#more
É um prazer dar-lhes as boas-vindas a este XI encontro do
Clube Valdai de Discussão Internacional.
Já se disse aqui que, este ano, o clube tem novos
co-organizadores, entre eles organizações não-governamentais russas, grupos de
especialistas e grandes universidades. Além disso, foi expressa a ideia de
ampliar a discussão para incluir não só a problemática russa, mas, também,
questões de política e economia globais.
Espero que estas mudanças organizativas e de conteúdo
reforcem as posições do clube como um importante foro de discussão e de reunião
de especialistas. Com isso, espero que o “espírito de Valdai” possa manter-se –
liberdade, abertura, possibilidade de expressar as mais diferentes opiniões e,
deste modo, as opiniões sinceras.
Neste sentido, quero dizer que não vou decepcioná-los e
falarei clara e sinceramente. Algumas coisas podem parecer duras, mas, se não
falarmos directa e sinceramente do que realmente pensamos, não teria sentido
reunirmo-nos nestes moldes. Seria melhor, nesse caso, manter os encontros
diplomáticos, onde ninguém diz nada com sentido claro e real e, recordando as
palavras de um famoso diplomata, darmo-nos conta de que os diplomatas têm
línguas próprias para não dizer a verdade.
Reunimo-nos aqui com outros objectivos: Reunimo-nos para
falar sinceramente. Hoje, necessitamos franqueza e dureza nas valorações, não
para nos atacarmos mutuamente, mas para tentar ir ao fundo das questões e
entender o que , na realidade, sucede no mundo, por que razão é menos seguro e
menos previsível, por que razão os riscos crescem por todo o lado.
A discussão de hoje teve lugar sob o tema “Novas Regras ou
Jogo sem Regras” Na minha opinião, esta formulação descreve muito exactamente o
histórico ponto de inflexão em que nos encontramos e a escolha que todos
teremos de fazer.
A tese de que o mundo contemporâneo está a mudar muito
rapidamente, evidentemente, não é nova. E sei que se falou disso durante a
discussão de hoje. É verdade que é difícil não nos darmos conta das dramáticas
transformações na política global, na economia, na vida social, na esfera das
tecnologias sociais, da informação, da produção.
Peço, desde já, desculpa se repito o que foi expresso por
alguns participantes neste foro. É difícil evitá-lo, os senhores falaram em
pormenor, mas vou expressar o meu ponto de vista, que pode coincidir ou ser
diferente do expendido pelos participantes do foro.
Não nos esqueçamos, ao analisar a situação actual, das
lições da História. Em primeiro lugar, as mudanças na ordem mundial – e os
acontecimentos que estamos a presenciar hoje são eventos desta escala – foram
acompanhadas, regra geral, se não por uma guerra global ou choques globais, por
uma cadeia de conflitos intensos de carácter local. Em segundo lugar, a
política mundial é, sobretudo, acerca da liderança económica, de questões de
guerra e paz e de dimensão humanitária, incluindo os direitos humanos.
No mundo, acumularam-se numerosas contradições. E devemos
perguntar-nos, sinceramente, uns aos outros se dispomos de uma rede de
segurança fiável. Por desgraça, não há garantias de que o sistema existente de
segurança global e regional possa proteger-nos de graves turbulências. O
sistema foi seriamente debilitado, fragmentado e deformado. As instituições
internacionais e regionais de relações económicas, políticas e culturais vivem
tempos difíceis.
Sim, muitos mecanismos de garantia da ordem pacífica foram
criados há bastante tempo, sobretudo como consequência da Segunda Guerra Mundial.
Permitam-me sublinhar que a solidez deste sistema se baseava não só no
equilíbrio de forças e no direito dos vencedores, mas, também, no facto de os
“pais fundadores” deste sistema de segurança se relacionarem, respeitosamente,
entre si, não tentavam apertar ou esmagar os outros, mas tratavam de chegar a
acordos.
O importante é que este sistema necessita desenvolver-se e,
apesar de todos os seus defeitos, necessita ser capaz de conter os problemas
mundiais existentes dentro de certos limites e de regular a intensidade da
natural competitividade entre países.
Estou convencido de que não podemos tomar este mecanismo de
pesos e contrapesos, que construímos ao longo das décadas passadas, com tanto
esforço e dificuldades, e destruí-lo, sem construir algo em seu lugar. Neste
caso, não haveria instrumentos, excepto a força bruta. O que necessitamos é de
levar a cabo uma reconstrução racional e adaptá-la às novas realidades do
sistema de relações internacionais.
Contudo, os Estados Unidos, que se declaravam a si mesmos
vencedores da Guirra Fria, pensaram que não havia nenhuma necessidade disso. E,
em vez de estabelecerem um novo equilíbrio de poder, condição indispensável
para a ordem e estabilidade, pelo contrário, deram passos que conduziram o
sistema a uma aguda e profunda desestabilização.
A Guerra Fria terminou. Mas não o fez com um tratado de paz,
mediante acordos compreensíveis e transparentes de observância das normas e
padrões existentes ou criação de novos. Isto criou a impressão de que os
chamados “vencedores” da Guerra Fria decidiram pressionar os acontecimentos e
redesenhar o mundo de modo a servir a satisfação das suas necessidades e
interesses. E se o sistema existente de relações internacionais, o direito
internacional e os pesos e contrapesos em curso entorpeciam a realização desses
objectivos, então o sistema era denunciado como inválido e antiquado e
promoviam a sua imediata demolição.
Perdão pela analogia, mas é assim que se comportam os novos
ricos, que, de repente, obtêm uma grande riqueza, neste caso na forma de
domínio mundial, liderança mundial. E, em vez de, com esta riqueza,
comportarem-se sabiamente e com cuidado, inclusivamente, claro está, no seu
próprio benefício, penso que fizeram muitos disparates.
Começou um período de diferentes interpretações e
deliberados silêncios, na política mundial. Sob o ataque do niilismo legal, o
direito internacional tem vindo a retroceder passo a passo. A objectividade e a
justiça foram sacrificadas no altar da conveniência política. As normas
jurídicas foram substituídas por interpretações arbitrárias e valorações
enviesadas. Além disso, o controle total dos meios de comunicação globais
permitiu fazer do branco preto do preto branco.
Nas condições de domínio de um país e seus aliados – ou dito
de outra forma, os seus satélites -, a procura de soluções globais
converteu-se, frequentemente, numa tentativa de impor as suas receitas
universalmente. As ambições deste grupo cresceram tanto que as políticas
acordadas nos corredores do poder são apresentadas como se fossem a opinião de
toda a comunidade internacional. Mas, isso não é assim.
O próprio conceito de “soberania nacional”, para a maioria
dos países, converteu-se em algo negativo. Em essência, foi proposta a seguinte
fórmula: quanto maior for a lealdade ao único centro de poder mundial, tanto
maior será a legitimidade deste ou daquele regime de governo. Mais logo teremos
uma discussão livre e, com todo o gosto, responderei às perguntas e gostaria,
também, de exercer o meu direito a fazer perguntas. Mas, no decurso desta
discussão, tentem refutar a tese que acabo de formular.
As medidas contra os que recusam submeter-se são bem
conhecidas e já foram postas em prática muitas vezes. Incluem o uso da força,
pressão económica e propagandística, ingerência nos assuntos internos, recurso
a uma certa legitimação “supra-legal” quando há que justificar uma solução
ilegal neste ou naquele conflito e o derrube de regimes molestos. Nos últimos
tempos, fomos testemunhas de uma chantagem aberta contra determinados líderes.
Não é em vão que o chamado “grande irmão” gasta milhares de milhões de dólares
em manter todo o mundo, incluídos os seus aliados mais chegados, sob
vigilância.
Perguntemo-nos até que ponto vivemos confortavelmente,
seguros e felizes, num mundo assim; até que ponto é justo e racional. Será que
não temos motivos verdadeiros para nos preocuparmos, discutir ou fazer
perguntas incómodas e inoportunas? Será que a excepcionalidade dos Estados
Unidos, tal como exercem a sua liderança, são, realmente, uma bênção para todos
nós e a sua contínua ingerência nos assuntos de todo o mundo está a trazer a
paz, prosperidade, progresso, crescimento, democracia e nós tenhamos,
simplesmente, que relaxar e gozar?
Permito-me dizer que não, que não é o caso, em absoluto. O
diktat unilateral e a imposição dos próprios modelos produz o efeito contrário:
em vez de solucionar os conflitos, eles sobem de intensidade; em vez de estados
soberanos e estáveis, vemos uma crescente disseminação do caos e, em vez de
democracia, o apoio a um muito duvidoso grupo, que vai dos neofascistas ao
radicalismo islâmico.
E por que razão apoiam esta gente? Porque os utilizam, numa
determinada etapa, como instrumento para alcançar os seus fins, depois, queimam
as mãos e recuam.
Fico sempre surpreendido quando vejo os nossos parceiros a
cair no mesmo buraco, isto é, a cometer o mesmo erro, uma e outra vez.
Numa certa altura, financiaram movimentos islamitas
extremistas para lutar contra a União Soviética. Esses grupos adquiriram
experiência de combate no Afeganistão e daí logo saíram os talibãs e Al-Qaeda.
O Ocidente, se não os apoiou, pelo menos fechou os olhos e eu diria que deu
informação e apoio político e financeiro à invasão, pelos terroristas
internacionais, da Rússia (nós não nos esquecemos disto) e dos países da Ásia
Central.Só depois dos horríveis ataques cometidos nos Estados Unidos é que
despertaram perante a ameaça comum do terrorismo. Recordo que, então, fomos os
primeiros a apoiar o povo dos Estados Unidos da América, reagimos como amigos e
parceiros a esta terrível tragédia do 11 de Setembro.
Nas minhas conversas com os líderes europeus e dos Estados
Unidos, falo sempre da necessidade de uma luta conjunta contra o terrorismo,
como tarefa global. Nesta tarefa, não nos podemos render e resignar perante a
ameaça, tão-pouco podemos dividi-la em partes separadas, usando uma dupla
bitola. Ao princípio, estiveram de acordo connosco, mas, em breve, tudo voltou
a ser como antes. Primeiro, a operação militar no Iraque e, em seguida, na
Líbia. Este país ficou, realmente, à beira da dissolução. Por que é que a Líbia
foi empurrada para esta situação? Agora, está em perigo de destruição total e
converteu-se num campo de treino de terroristas. Só a vontade e a inteligência
da actual direcção do Egipto permitiu, a este crucial país árabe, sair do caos
e do domínio total do extremismo. Na Síria, como em tempos passados, os Estados
Unidos e os seus aliados começaram a financiar e a armar directamente os
rebeldes, permitindo-lhes engrossar as suas fileiras com mercenários de
diferentes países. Permitam-me perguntar: de onde obtêm estes rebeldes o
dinheiro, as armas e os especialistas militares? De onde vem tudo isso? Por que
razão o Estado Islâmico se converteu num grupo tão poderoso, essencialmente
numa real força armada? No que diz respeito ao financiamento, hoje, o dinheiro
não provém apenas das drogas, cuja produção, por certo, aumentou em várias
ordens de grandeza, e não apenas numa pequena percentagem, durante a presença
das forças internacionais no Afeganistão. Os senhores sabem isto, certamente. O
financiamento provém, também, da venda do petróleo, da sua extracção e
transporte, nos territórios controlados pelos terroristas. Vendem-no a preços
de dumping e há alguém que o compra,
o revende, ganha dinheiro com isso, sem pensar que está a financiar os
terroristas, que, cedo ou tarde, virão ao seu território semear a morte no seu
próprio país.
E os recrutas, de onde vêm os novos recrutas? No Iraque,
depois de Saddam Hussein ter sido derrubado, as instituições estatais,
incluindo o exército, ficaram em ruínas. Nessa altura, dissemos: tenham muito,
muito cuidado. Vocês estão a mandar essa gente para as ruas e que vai ela
fazer? Não esqueçam que – justamente ou não – eles estavam em posições de mando
de uma potência regional relativamente grande. Em que é que os estão, agora a
converter?
Qual foi o resultado? Dezenas de milhares de soldados e
oficiais, antigos activistas do partido Baaz, atirados para a rua, juntaram-se
às fileiras dos rebeldes. Estará aí a chave da eficácia do Estado Islâmico, o
ISIS? Actuam de uma maneira muito eficaz, do ponto de vista militar, é gente
muito profissional. A Rússia advertiu, em repetidas ocasiões, para o perigo de
acções armadas unilaterais, as ingerências nos assuntos de estados soberanos e
o namoro a grupos extremistas e radicais. Insistimos na necessidade de incluir
os grupos que lutam contra o governo central da Síria, incluído o ISIS, na
lista de organizações terroristas. Mas vimos algum resultado? Foi um apelo em
vão.
À vezes temos a impressão de que os nossos colegas e amigos
lutam constantemente contra os resultados da sua própria política, que dedicam
os seus esforços a lutar contra riscos que eles próprios criaram, pagando, por
isso, um preço cada vez maior.
Colegas, este período de dominação unipolar demonstrou
claramente que o domínio de um só centro de poder não leva ao aumento da
governabilidade dos processos globais. Pelo contrário, esta construção instável
mostrou a sua incapacidade para lutar contra ameaças como os conflitos
regionais, o terrorismo, o narcotráfico, o fanatismo religioso, o chauvinismo e
o neonazismo. Ao mesmo tempo, abriu um amplo caminho para um hipertrofiado
orgulho nacional, manipulando a opinião pública, para que consinta que o forte
acosse e suprima o mais débil.
Essencialmente, o mundo unipolar é simplesmente, um meio
para justificar o domínio sobre povos e países. O mundo unipolar converteu-se
em algo demasiado incómodo, uma carga demasiado pesada e incontrolável,
inclusive para o seu autoproclamado líder. Comentários do género ouviram-se
aqui e eu estou totalmente de acordo com isso. Daí as actuais tentativas, numa
nova etepa histórica, de recriar algo parecido a um mundo quasi-bipolar, como
um modelo conveniente de perpetuação da liderança americana. É irrelevante quem
ocupa o lugar do “centro do mal” na propaganda americana, o antigo lugar da
URSS, como principal adversário. Poderia ser o Irão, como país que tenta aceder
à tecnologia nuclear; a China, como primeira economia do mundo; ou a Rússia,
como superpotência nuclear.
Hoje, vemos, de novo, tentativas de fragmentar o mundo,
traçar novas linhas de divisão, estabelecer coligações criadas não “a favor
de”, mas “contra” quem quer que seja, criar, de novo, a imagem de um inimigo,
como foi feito durante a Guerra Fria, e conseguir o direito a liderar, ou se
preferirem, o direito a ditar condições. Era assim como se tratava a situação
durante a época da Guerra Fria. Todos o compreendemos e sabemos. Aos seus
aliados, os Estados Unidos diziam sempre: “Temos um inimigo comum, um rival
terrível, é o centro do mal e nós estamos a defender-vos dele. Por isso, temos
o direito a dirigir-vos, obrigar-vos a sacrificar os vossos interesses
políticos e económicos e fazer-vos partilhar os custos desta defesa colectiva,
mas seremos nós, evidentemente, a tratar disso”. Em resumo, num mundo novo e em
mudança, vemos hoje, outra vez, a tentativa de reproduzir estes modelos
conhecidos de condução global, para garantir a posição excepcional dos Estados
Unidos e colher dividendos políticos e económicos.
Mas estes objectivos estão, crescentemente, divorciados da
realidade e em contradição com a diversidade do mundo e criarão,
indefectivelmente, enfrentamentos e reacções de resposta que, finalmente, terão
o efeito contrário ao pretendido. Vemos todos o que sucede quando a política se
mistura, imprudentemente, com a economia e a lógica da confrontação, que só
prejudica as próprias posições e interesses económicos, inclusive os interesses
económicos nacionais.
Os projectos económicos conjuntos e os investimentos mútuos
aproximam, objectivamente, os países, ajudam a suavizar os problemas actuais
das relações entre estados. Contudo, hoje em dia, a comunidade económica global
sofre uma pressão sem precedentes, por parte dos governos ocidentais. De que
negócios, de que pragmatismo e conveniência económica podemos falar , quando
ouvimos slogans como “a pátria está em perigo”, “o mundo livre está ameaçado” e
“a democracia está em risco”? Perante isto, todos (no Ocidente) necessitam
mobilizar-se. Mas, estes slogans são os que constituem uma verdadeira política
de mobilização.
As sanções estão a minar as bases do comércio mundial, as
normas da OMC e os princípios da inviolabilidade da propriedade privada.
Golpeiam fortemente o modelo liberal de globalização, baseado nos mercados, a
liberdade e a competitividade; um modelo, permitam-me recordá-lo, cujos maiores
beneficiários foram precisamente os países ocidentais. Agora, arriscam-se a
perder a confiança de que gozavam como líderes da globalização. Nós
interrogamo-nos: era necessário fazer isto? No fim de contas, o bem-estar dos
próprios Estados Unidos depende, em grande medida, da confiança dos
investidores, dos detentores estrangeiros de dólares e títulos do Tesouro
americano. Agora, a confiança está a ser minada e sinais de desilusão acerca
dos frutos da globalização aparecem em muitos países. O precedente de Chipre e
a motivação política das sanções só acentuarão as tendências para o
fortalecimento da soberania económica e financeira dos países, ou uniões
regionais, com o objectivo de procurar modos de se protegerem dos riscos das
pressões externas. Assim, cada vez mais países tentam sair da dependência do
dólar e criam sistemas financeiros e comerciais alternativos e novas moedas de
reserva. Na minha opinião, os nossos amigos americanos estão, simplesmente,
cortando o ramo em que estão sentados. Não há que misturar a política com a
economia, mas é precisamente isso que está acontecendo, agora. Pensava, e
continuo a pensar, que as sanções motivadas politicamente são um erro, que traz
prejuízos a todos, mas estou seguro de que, mais tarde, falaremos disto.
Sabemos como se tomaram essas decisões e quem exerce a
pressão. Mas, permitam-me chamar a atenção sobre isto: a Rússia não se vergará
perante as sanções, nem será prejudicada por isso, nem a verão bater à porta de
alguém a mendigar ajuda. A Rússia é um país auto-suficiente. Vamos trabalhar
dentro do ambiente económico internacional existente, desenvolver a nossa
produção e tecnologia e actuar de forma decidida para realizar as
transformações que sejam necessárias. A pressão exterior, como ocorreu em
anteriores ocasiões, só terá como resultado consolidar a nossa sociedade,
manter-nos alerta e concentrados nos nossos principais objectivos de
desenvolvimento. As sanções, evidentemente, são um estorvo. Tentam, com elas,
prejudicar-nos, bloquear o nosso desenvolvimento, isolar-nos política,
económica e culturalmente, isto é, condenar-nos ao atraso. Mas, deixem-me
dizer-lhes, novamente, que hoje o mundo é um lugar muito diferente. Não temos a
menor intenção de nos fecharmos, elegendo um caminho de desenvolvimento
confinado, que nos leve a viver em autarcia. Estamos sempre dispostos ao
diálogo, incluindo a normalização das relações das relações económicas e
políticas. Contamos, para isso, com as atitudes e comportamentos pragmáticos
das comunidades de negócios dos principais países.
Ouve-se, hoje, afirmar que a Rússia vira as costas à Europa
– ouviu-se, seguramente, no decurso desta discussão – e que está procurando
outros parceiros comerciais, sobretudo na Ásia. Quero dizer que isso não é
assim, de modo nenhum. A nossa política activa, na região Ásia-Pacífico, não
começou ontem, nem como resposta às sanções, sendo uma política iniciada há
muitos anos. Tal como muitos outros países, os ocidentais incluídos, nós vemos
que a Ásia tem um papel cada vez maior no mundo, tanto na economia, como na
política, e não podemos dar-nos ao luxo de subestimar ou ignorar estes
desenvolvimentos. Quero sublinhar, de novo, que todos o fazem e nós fá-lo-emos,
tanto mais que uma parte significativa do nosso território está na Ásia. Por
que deveríamos abster-nos de utilizar a nossa vantagem competitiva nesta área?
Isso seria simplesmente miopia, uma grave falta de visão, a longo prazo.
Desenvolver relações económicas com esses países e realizar
projectos conjuntos de integração criam, também, grandes incentivos para o
nosso desenvolvimento interno. As actuais tendências demográficas, económicas e
culturais dizem-nos que a dependência de uma única superpotência diminuirá,
objectivamente, Isto é o que especialistas europeus e norte-americanos têm dito
e escrito, também eles. Provavelmente, os desenvolvimentos na política mundial
reflectirão os mesmos factos que estamos vendo na economia global: uma
competitividade forte, em nichos específicos, e frequentes mudanças de líderes,
em áreas específicas. Isto é inteiramente possível.
É indubitável que os factores humanos – educação, ciência,
saúde, cultura – terão um papel crescente na competitividade global. Isto, por
seu lado, tem um forte impacto nas relações internacionais, porque a eficácia
deste soft power dependerá, em grande medida, do êxito real na formação do
capital humano, mais do que em sofisticados truques de propaganda.
Ao mesmo tempo, a formação do chamado mundo policêntrico
(também quero chamar a atenção para isto, estimados colegas), em e por si
mesmo, não melhora a estabilidade; de facto, o mais provável é o contrário. O
objectivo de conseguir um equilíbrio global transforma-se num complicado
quebra-cabeças, numa equação com muitas incógnitas.
Que nos espera, portanto, se escolhermos não optar por esses
regras - ainda que as saibamos estrictas e inconvenientes - mas viver sem
qualquer regra? Precisamente, este cenário é inteiramente possível e não o
podemos descartar, dadas as tensões da situação global. Pode-se fazer muitos
prognósticos, observando as tendências actuais, mas, por desgraça, não são
optimistas. Se não criarmos um sistema claro de obrigações mútuas e de acordos,
se não construirmos um mecanismo de condução e resolução das situações de
crise, os sintomas da anarquia global aumentarão, inevitavelmente.
Já hoje vemos um rápido crescimento das possibilidades de uma
série de violentos conflitos, com participação directa ou indirecta das grandes
potências. E os factores de risco incluem, não só os tradicionais confrontos
entre países, mas, também, a instabilidade interna de alguns países, sobretudo
dos situados na intersecção dos interesses geopolíticos das grandes potências
ou na fronteira das grandes zonas histórico-culturais, económicas e
civilizacionais.
A Ucrânia, sobre a qual, estou certo, se discutiu muito e de
que falaremos ainda mais, é um dos exemplos deste tipo de conflitos, que
afectam o equilíbrio mundial de forças, e creio estar longe de ser o último.
Daí vem a sequente ameaça real de destruição do sistema de acordos sobre
limitação e controle de armas. E o começo deste processo foi provocado pelos
Estados Unidos, quando, em 2002, e de forma unilateral, abandonou o Tratado de
Mísseis Antibalísticos e, depois, começou, e hoje continua activamente, a criar
o seu sistema de mísseis de defesa global.
Colegas, amigos,
Quero chamar a vossa atenção para o facto de não termos sido
nós quem começou esse processo. Estamos a voltar àqueles tempos em que, em
lugar do equilíbrio de interesses e garantias mútuas, era o medo, o risco da
autodestruição, que afastava as nações do conflito directo. À falta de
instrumentos legais e políticos, as armas voltam uma vez mais ao centro da
agenda global. São utilizadas onde convém e como convém, sem nenhuma sanção do
Conselho de Segurança da ONU. E se o Conselho de Segurança recusa adoptar tais
decisões, diz-se de imediato que é um instrumento antiquado e ineficaz.
Muitos Estados não vêem outras garantias da sua soberania
senão criar as suas próprias bombas. Isto é extremamente perigoso. Somos
partidários de conversações contínuas e insistimos na necessidade de
conversações para diminuir os arsenais nucleares. Mas, discussões sérias, sem
duplos critérios.
Que quero dizer? Hoje, muitos tipos de armas de grande
precisão são, pela sua capacidade destrutiva, quase armas de destruição maciça.
E, em caso de renúncia plena ao arsenal nuclear ou diminuição crítica do mesmo,
o país que ostente a liderança na criação e produção destes sistemas de alta
precisão terá uma clara vantagem militar. Romper-se-á a paridade estratégica, o
que, muito provavelmente, terá um efeito desestabilizador e aparecerá a
tentação de usar o chamado “primeiro ataque preventivo global”. Numa palavra,
os riscos não diminuirão, mas aumentarão.
A seguinte ameaça evidente é o aumento dos conflitos
étnicos, religiosos e sociais. Estes conflitos são perigosos, não só em si mesmos,
mas, também, porque criam zonas de anarquia, de ausência de qualquer lei e de
caos, onde se sentem bem os terroristas e os criminosos, e florescem a
pirataria e o tráfico de pessoas e drogas. Por certo, os nossos colegas
tentaram dirigir estes processos, utilizar os conflitos regionais e construir
“revoluções coloridas”, para satisfazer os seus interesses, mas o génio
escapou-se-lhes da garrafa. Parece que nem os pais da “teoria do caos
controlado” sabem o que fazer com o caos provocado e aprofunda-se a divisão e
as dúvidas entre eles.
Seguimos muito de perto as discussões nas elites dirigentes
e entre os especialistas. Basta ler os títulos da imprensa ocidental, durante o
último ano: os mesmos a quem chamavam lutadores pela democracia são, depois, caracterizados
como islamitas; ao princípio, falavam de revoluções e, depois, de tumultos e
revoltas. O resultado é evidente: uma maior expansão do caos global.
Colegas, dada a situação global, é o momento de começar por
nos pormos de acordo sobre certas questões de princípio, o que é tremendamente
importante e necessário e muito melhor do que separar-nos e regressar cada qual
para o seu lado. Tanto mais quanto nos enfrentamos a problemas comuns e
estamos, como se diz, no mesmo barco. O caminho lógico para sair desta situação
é a cooperação entre nações e sociedades, procurando respostas colectivas aos
múltiplos desafios e uma gestão comum no enfrentamento dos riscos. Claro,
alguns dos nossos parceiros, por algum motivo, só se lembram disto quando
convém aos seus interesses.
A experiência prática mostra que as respostas conjuntas aos
problemas não são sempre uma panaceia; é evidente e há que reconhecê-lo. Além
disso, na maioria dos casos, são difíceis de conseguir: não é fácil superar as
diferenças dos interesses nacionais e a subjectividade dos diferentes pontos de
vista, sobretudo quando se trata de países com uma tradição cultural e
histórica diferente. Mas, há exemplos que demonstram que, quando há objectivos
comuns e actuamos com base em critérios unificados, podemos, conjuntamente,
alcançar êxitos reais.
Permitam-me recordar a solução do problema das armas
químicas, na Síria, o dálogo substantivo sobre o programa nuclear iraniano e o
nosso trabalho na questão norte-coreana, que também teve alguns resultados
positivos. Por que não utilizar toda esta experiência, tanto para a solução de
problemas locais, como globais?
Qual deveria ser o fundamento legal, político e económico da
nova ordem mundial, que garanta a estabilidade e segurança, que garanta uma sã
competitividade e não permita a formação de novos monopólios a bloquear o
desenvolvimento? É pouco provável que alguém possa, agora, dar uma resposta
acabada, absolutamente exaustiva, a esta questão. É necessário um longo
trabalho, com a participação de um amplo círculo de países, empresas globais,
sociedades civis e de foros de especialistas como o nosso.
Contudo, é evidente que o êxito e um resultado real só serão
possíveis se os participantes-chave da vida internacional puderem harmonizar os
seus interesses básicos, na base de uma lógica de auto-limitação, e derem o
exemplo de liderança responsável e positiva. Há que definir, claramente, até
onde podem chegar as acções unilaterais e onde e quando se deve aplicar
mecanismos multilaterais. E, para melhorar a eficiência do direito
internacional, devemos resolver o dilema nas acções da comunidade
internacional, para garantir a segurança e os direitos humanos, o princípio da
soberania nacional e a não ingerência nos assuntos internos dos países.
Este tipo de colisões leva, cada vez mais frequentemente, à
ingerência estrangeira arbitrária em processos internos muito complicados e,
uma e outra vez, provocam perigosos conflitos entre os principais actores
mundiais. A manutenção da soberania é um elemento supremamente importante para
a manutenção e reforço da estabilidade mundial.
Está claro que a discussão sobre os critérios de utilização
da força externa é muito complicada; é quase impossível separá-la dos
interesses dos diferentes países. Contudo, é bastante mais perigosa a falta de
acordos compreensíveis para todos, quando não se estabelecem, claramente, as
condições para que a ingerência seja necessária e legal. Acrescento a isto que
as relações internacionais devem construir-se sobre o direito internacional, em
cuja base devem estar princípios morais tais como a justiça, a igualdade e a
verdade. Talvez o mais importante seja o respeito pelo parceiro e seus
interesses. É uma fórmula óbvia, mas que, se for seguida, pode mudar de raiz a
situação no mundo. Estou certo de que se existir vontade, podemos restabelecer
o funcionamento do sistema de instituições internacionais e regionais. Não é
necessário, sequer, construir algo de novo a partir do zero, isto não é um
“greenfield”, um terreno virgem, tanto mais quando as instituições criadas
após a Segunda Guerra Mundial são
universais e podem ser preenchidas com conteúdos modernos, adequados à condução
da situação actual.
Isto é verdade em relação ao melhoramento do trabalho da
ONU, cujo papel central é insubstituível. E da OSCE, o Organismo para a
Segurança e Cooperação Europeias, que ao londo de 40 anos provou ser um
mecanismo de garantia da segurança e cooperação na zona euro-atlântica. Há que
dizer que, agora mesmo, na solução da crise no sudeste da Ucrânia, a OSCE está
a ter um papel muito positivo.
À luz das mudanças fundamentais no ambiente internacional, a
crescente ingovernabilidade e as diferentes ameaças obrigam-nos a forjar um
novo consenso entre as forças responsáveis. Não se trata de qualquer acordo
local ou de uma separação de esferas de influência, ao estilo da diplomacia
clássica, ou do domínio completo e global de algum actor. Creio que se
necessita de uma nova versão da interdependência. Não há que lhe ter medo. Pelo
contrário, é um bom instrumento para harmonizar posições.
Isto é particularmente relevante se se levar em conta o
fortalecimento e crescimento de determinadas regiões do planeta, o que comporta
a exigência dos ditos polos, criando organizações regionais poderosas e
elaborando normas para a sua interacção. A cooperação entre estes centros daria
uma força considerável à segurança mundial, à política e economia. Mas, para
haver êxito num tal diálogo, temos que partir do pressuposto de que todos os
centros regionais e os projectos de integração, nascidos à sua volta, devem ter
idêntico direito a desenvolver-se, de tal modo que possam complementar-se
mutuamente e que ninguém os possa forçar a incorrer em conflitos ou posições
artificiais. Acções destrutivas deste tipo romperiam as relações entre estados
e eles mesmos atravessariam situações muito difíceis, chegando, inclusive, à
sua própria destruição.
Gostaria de lhes recordar os acontecimentos do ano passado.
Dissemos, então, aos nossos parceiros, tanto aos americanos como aos europeus,
que decisões apressadas e às escondidas sobre, por exemplo, a integração da Ucrânia
na União Europeia, comportavam grandes riscos. Não dissemos nada sobre
política, falávamos apenas de economia e dizíamos que tais passos, realizados
sem nenhum acordo prévio, afectava os interesses de muitas outras nações,
incluindo a Rússia como principal parceiro comercial da Ucrânia, e que uma
ampla discussão sobre estes temas era necessária. Por certo, recordo,
relativamente a isto, a entrada da Rússia, por exemplo, na OMC requereu 19
anos, o que supôs um duro trabalho, mas conseguiu-se um consenso.
Por que trago este tema à colacção? Porque, na implementação
do projecto de integração da Ucrânia, os nossos parceiros farão entrar os seus
bens e serviços por uma porta traseira, para dizê-lo de algum modo, e nós não
concordamos com isso e ninguém pediu a nossa opinião. Tivemos discussões sobre
todos os temas relacionados com a integração da Ucrânia na EU, mas quero
sublinhar que isso teve lugar de maneira totalmente civilizada, indicando os
possíveis problemas, apresentando argumentos e razões. Ninguém quis ouvir-nos,
nem falar connosco, dizendo-nos, simplesmente: “Não é assunto vosso, ponto. Fim
da discussão”. Em vez de um diálogo amplo e compreensivo, mas, sublinho,
civilizado, a controvérsia tomou outro rumo e desembocou num golpe de estado,
levaram o país ao caos, ao colapso económico e social e provocaram uma guerra
civil com muitíssimas vítimas. Porquê? Quando pergunto aos meus colegas a
razão, não há resposta. Ninguém responde nada; é assim e ponto. Ficam todos sem
resposta ou dizem que isso foi o que sucedeu. Mas, se não se tivesse alentado
tais acções e atitudes, as coisas não teriam ocorrido como ocorreram. Afinal
(já falei disto), o anterior presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovitch, havia
assinado e aceitado tudo. Para quê fazer tudo isto, que sentido teve? É esta
uma forma civilizada de resolver as questões? Parece que aqueles que
organizaram mais e mais “revoluções coloridas” se consideram a si próprios uns
“artistas geniais” e não podem parar.
Tenho a certeza de que o trabalho de associações de
integração, as estruturas de cooperação regional, as estruturas de cooperação
regional deverão construir-se numa base clara e transparente. Um bom exemplo
disso é o processo de formação da União Económica Euroasiática. Os estados
membros deste projecto informaram, previamente, os seus parceiros das suas
intenções, dos parâmetros da nossa união e dos princípios do seu funcionamento,
que estavam totalmente de acordo com as normas da Organização Mundial de
Comércio.
Acrescento que também demos as boas-vindas ao início de diálogo
entre as uniões europeia e euroasiática. Mas, quanto a isto, também nos
hostilizaram quase sempre e tão-pouco se entende por quê: que temem? E, claro,
neste trabalho conjunto, consideramos ser necessário o diálogo (falei disso
muitas vezes e ouvi muitos dos nossos parceiros ocidentais), aceitar a
necessidade de formação de um espaço único económico e de cooperação
humanitária, que se estenda do Atlântico ao Pacífico.
Colegas, a Rússia fez a sua escolha. As nossas prioridades
são o aperfeiçoamento das instituições democráticas e de economia aberta, um
desenvolvimento interno acelerado, com todas as tendências positivas actuais no
mundo, e a consolidação da sociedade, com base nos valores tradicionais e no
patriotismo. Temos um itinerário pacífico, positivo, de integração. Trabalhamos
activamente com os nossos colegas da União económica Euroasiática, na
Organização de Cooperação de Shangai, com os BRICS e outros parceiros. Esta
agenda está dirigida ao desenvolvimento das relações entre países, e não à sua
separação. Não queremos criar nenhum bloco ou ver-nos envolvidos em nenhum
intercâmbio de golpes.
Nâo têm nenhuma base aqueles que asseguram que a Rússia
trata de estabelecer algum tipo de império, violando a soberania dos seus
vizinhos. Tal acusação carece de fundamento. A Rússia não necessita de nenhum
lugar especial, exclusivo, no mundo, quero reiterar. Respeitando os interesses
de outros, queremos, simplesmente, que se tenham em conta os nossos e se
respeite a nossa posição.
Todos sabemos que o mundo entrou numa época de mudanças e
transformações globais e todos necessitam ter cuidado e evitar dar passos sem
reflectir. Nos anos posteriores à Guerra Fria, os participantes na política
mundial perderam um pouco essas qualidades. Agora, há que recordarmo-nos delas.
M caso contrário, as esperanças de um desenvolvimento pacífico e estável são
uma perigosa ilusão e as actuais comoções serão um prelúdio do colapso da ordem
mundial.
Sim, certamente já lhes falei disto: a construção de uma
ordem mundial mais estável é uma tarefa complicada, trata-se de um trabalho
longo e difícil. Fomos capazes de criar umas regras de interacção, depois da
Segunda Guerra Mundial; e pudemos chegar a um acordo, nos anos 70, em
Helsínquia. A nossa obrigação comum é a de encontrar uma solução para esta
tarefa fundamental, nesta nova etapa de desenvolvimento.
Muito obrigado pela vossa atenção.