Tem Portas toda a razão:
Lagarde devia ter referido o sucesso de Portugal, tão grande ou maior que o de
Espanha. Mas ficou desculpada, pois fora um “lapso involuntário”.
Respirámos todos de
alívio, não fosse dar-se o caso de haver lapsos propositados, à imagem das demissões
irrevogáveis que nunca o foram.
Igualmente grave seria pormo-nos
a pensar que os políticos profissionais, tal vendedores de feira, moldam o seu
discurso ao lugar, momento e público que têm pela frente e que Lagarde, falando
em França, mas sabendo-se escutada em Espanha, decidiu vender dois cobertores
pelo preço de um só: aos franceses, que não devem rejeitar o bom que é a
austeridade e, aos espanhóis, que não devem prestar atenção ao Podemos, mas
orgulharem-se do seu governo que transformou a Espanha num modelo.
E o lapso, afinal, não
é lapso. Portugal não tem, ainda, um movimento social que ponha em perigo o
poder dominante. É em Espanha que “o fantasma do poder popular”, como diz Felipe
Alcaraz, está a assombrar a casta das Lagardes.
GOVERNAR SEM GRAVATA
Felipe Alcaraz*
Estão caindo todas as solenidades e carismas do poder. Do
poder de sempre e do monopólio de uns poucos. Esse poder que falava em latim,
que se distanciava com gestos elegantes, apagava as luzes atrás de si e
fechava-se, finalmente, em gabinete, para dizer as coisas a sós. E, sobretudo,
para decidir uma mensagem: o poder, nem todos o poderão exercer, nem todos
estarão capazes. É um assunto complicado que exige uma imensa responsabilidade.
Pois bem, de pronto, descerram-se cortinas, acendem-se as
luzes e aparecem, à volta da mesa, o padre, o banqueiro e o engravatado
presidente de Câmara. Esperam, olhando fixamente uma espécie de crustáceo
negro: um telefone. A mão invisível e negra que marca a história. Se há
resistência, há que marcar o número do posto das forças da ordem.
Em 1848, a família De Tocqueville, espavorida, ouvia, do
salão do seu enorme apartamento sobre o Sena, os disparos dos insurrectos, nos
subúrbios. Chamaram a criada para que fechasse as janelas e a criada, ouvindo
os disparos das espingardas, cada vez mais perto, sorriu. O senhor De
Tocqueville expulsou-a, de imediato, do salão, da casa e do posto de trabalho.
Sabia perfeitamente o que significava aquele sorriso. Era o sorriso do
fantasma.
Um fantasma percorre as redacções, os postos de comando, os
executivos dos partidos do regime: é o fantasma do poder popular. As pessoas
souberam transformar o seu mal-estar em desejo de unidade e mudança, em
capacidade programática, e dispõem-se a tomar o poder. Dispõem-se a fazê-lo e,
além disso, sem imitar os gestos, o tom, a roupagem do poder de sempre. As
pessoas compreenderam que podem, que sabem governar, que se atrevem a isso e os
do regime, espavoridos, compreendem que, mesmo fechando as portadas dos
apartamentos, não há força que possa dissuadir as pessoas das suas satânicas
pretensões.
Chama-lhe unidade popular, chama-lhe frente ampla, bloco
social, unidade política, concreção das convergências sociais… ou, se quiseres,
chama-lhe poder popular. Podes, inclusive, falar de frente popular. O certo é
que, neste momento histórico, não há pretextos, não há desvios, circunlóquios.
A saída da crise só tem duas portas: ou se mantém o regime e a marca branca do
neoliberalismo (viram-nos, em Itália, todos com camisa branca?), ou se abre
caminho à saída constituinte, democrática, anticapitalista. Que não há
maturidade suficiente? É possível: não existe, em Espanha, um demasiado amplo
sentido comum anticapitalista. Mas, ou nos lançamos, e lançamo-nos agora, ou o
regime organiza os próximos 30 anos sobre a resignação, a divisão e o
entreguismo. Assim que se deu a conhecer a possibilidade de uma estratégia de
“frente popular”, não só saltaram como molas todos os centros nevrálgicos, que
não conseguiram evitar editoriais e clamores de medo, como começou, também, a
funcionar o grande batalhão do transformismo mediático.
Gramsci falou do transformismo como operação através da qual
o poder, o antigo domínio, coopta, para a sua hegemonia, antigos intelectuais
revolucionários, com a missão de integrar, convencer, reduzir, resignar, os
batalhões inquietos, através de uma prosa equidistante, sibilina, sedutora.
Pois bem, todos/as se puseram ao trabalho de uma só vez. Talvez alguns, depois
de tomar um café na bodeguilla [N.T.]
respectiva. Mas, não é necessário receber orientações excessivamente
explícitas. Basta um gesto, um riso no momento certo, a ridicularização dos
pobres (sem gravata), o assinalar dos dogmáticos que não são capazes de perdoar
uma derrota histórica, a classificação de “comunistas” com uma displicente
sacudidela de mão, própria do senhor De Tocqueville.
E, atenção, não se trata de dizer, agora, que não entenderam
nada. Entenderam, sim. Entenderam perfeitamente do que se trata. Simplesmente,
o medo começou a mudar de campo e não é preciso arranjar uma gravata para ostentar
não se sabe que respeitabilidade, no momento de conquistar o poder e governar
através de uma revolução democrática. Eles entenderam isso e as pessoas
entenderam que eles entenderam. E é tudo. Agora a história segue o seu curso,
esse (glorioso) sujeito histórico que, num dado momento, pode derrubar governos
e, até, monarcas recém-recauchutados.
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[N.T.] Cave de vinhos. A da Moncloa, palácio presidencial,
ficou conhecida por, aí, Felipe González organizar festas e tertúlias com
artistas e intelectuais.
* Doutor em Filologia Românica. Escritor e Professor jubilado
da Universidade de Jaén.