UNIÃO EUROPEIA: UMA NOVA COLONIZAÇÃO (I)
Por Héctor Illueca e Adoración Guamán*
A crise económica que afecta
o nosso país e as políticas de austeridade impostas pela troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário
Internacional) estão a provocar uma fractura social cada vez mais evidente. Os
cidadãos observam, atónitos, a degradação da vida quotidiana e a tolerância do
poder para com os abusos cometidos pelos mais privilegiados do país. Como não
podia ser de outra forma, a crescente deterioração das condições materiais de
uma cada vez mais ampla maioria social chega acompanhada de gravíssimos
escândalos de corrupção, que salpicam o conjunto das elites políticas e
económicas, gerando uma sociedade cada vez mais instalada na injustiça e na
desigualdade.
Neste contexto, o sonho da
integração europeia tornou-se um pesadelo, que impõe um duro presente e nos
condena a um futuro sombrio. De forma intencional, ofereceu-se aos cidadãos uma
imagem falsa, ideológica e idílica da hoje chamada União Europeia, utilizando
os meios de comunicação para projectar uma visão mítica e arredada da
realidade: uma União Europeia completamente alheia aos princípios de coesão e
colaboração solidários, que se converteu numa espécie de reserva de caça alemã,
em que as economias fortes exploram as suas vantagens económicas e comerciais,
para esmagar as débeis. Uma União Europeia governada pela lei da selva.
Contudo, a gravidade da
situação económica e a queda da máscara do bem-estar individual fazem com que
comece a abrir caminho, entre os habitantes da periferia, a ideia de serem
vítimas de uma nova colonização. É cada vez mais difícil ocultar que a
instauração do euro gerou uma relação centro-periferia, no seio da União
Europeia, que enfrenta o Norte central e dominante com o Sul periférico e
dominado. Já não é possível negar que a existência da moeda única beneficiou a
Alemanha e outros países ricos da Europa, reforçando a sua posição, no esquema
europeu, como exportadores líquidos de bens de equipamento e de consumo e como
importadores líquidos da procura geral. Dizendo claramente e em poucas
palavras: a união económica e monetária permitiu que os países centrais,
especialmente a Alemanha, acumulassem excedentes comerciais crescentes, no seu
espaço vital europeu, bloqueando qualquer possibilidade de desvalorização
competitiva e alimentando uma intensa redistribuição do trabalho, em prejuízo
das modestas economias da bacia mediterrânica. Os países fortes do centro, como
a Alemanha, Holanda ou Finlândia, aumentam a sua competitividade, conservam a
sua soberania nacional e financiam os seus Estados de bem-estar, graças à perda
de competitividade, à destruição da soberania e ao desmantelamento do bem-estar
dos seus companheiros de moeda – a periferia europeia.
Os trabalhadores do Estado
espanhol, juntamente com os das restantes economias periféricas, converteram-se
numa reserva de mão-de-obra low cost.
Como assinalaram já alguns autores, o processo de construção europeia gerou uma
nova divisão internacional do trabalho, alimentando uma dinâmica colonialista,
caracterizada pela hegemonia alemã e pela subordinação das economias periféricas
(1).
É isto que explica que as actuações estatais de controle sobre o mercado e de
protecção dos direitos sociais estejam sendo destruídas, ao ritmo dos ditames
da união económica e monetária. Quando as exigências do processo entram em
contradição com as disposições estatais em matéria de política social, os
Estados periféricos procedem à adaptação dos seus respectivos sistemas de
bem-estar, sempre no sentido de reduzir a protecção dos direitos laborais e
sociais. O dumping social não só não
foi combatido, como foi fomentado, fazendo da regulação do factor trabalho um
elemento de competitividade e desencadeando um feroz darwinismo normativo, para
reduzir os níveis de protecção laboral e social.
A nova divisão europeia do
trabalho explica e promove a progressiva destruição dos modelos sociais
estatais, auspiciada pela troika e
imediatamente perceptível em dois âmbitos fundamentais: a flexibilização dos
mercados de trabalho (em concreto, através da degradação da estabilidade no
emprego e da desvalorização do custo da mão-de-obra) e a redução da protecção
social, em particular dos sistemas de segurança social (redução das pensões de
reforma, cortes na Saúde, etc). A sua influência vê-se, igualmente, na reforma
educativa do Ministro Wert, também auspiciada pelas instituições europeias, que
orienta o sistema educativo para a preparação de mão-de-obra barata, provida
dos conhecimentos indispensáveis para responder adequadamente no mercado
laboral lixo, que caracteriza os países subdesenvolvidos. A posição dependente
e periférica da nossa economia , no esquema europeu, é radicalmente
incompatível com a existência de pensões públicas, educação e saúde públicas e
um mercado laboral medianamente digno.
Ao aceitar os diktat da troika, as classes dirigentes dos países
periféricos assumem a sua incapacidade em encarar um caminho independente para
os seus países e pactam uma relação de subordinação e dependência, semelhante à
que se produz num processo de colonização clássico, caracterizado pela
espoliação sistemática das economias periféricas e pela sobreexploração dos
seus trabalhadores. Não devemos esquecer que são as classes dirigentes dos
diferentes Estados membros que construíram e aprofundaram este modelo de União
Europeia e, sob a sua intocável legitimidade, escudaram-se as mais impopulares
e duras reformas. A possibilidade de minar a posição negociadora dos sindicatos
alentou a conivência traidora das elites dos países deficitários, alimentando
uma aliança sólida e estável com a burguesia alemã, para impor uma nova ordem
político-social à escala europeia.
Neste contexto, não deixa de
surpreender que determinados sectores da esquerda espanhola e europeia insistam
em reformar a eurozona como solução para a actual situação de emergência social
e económica. Com certo ar panglossiano, invocando a necessidade de “mais
Europa”, criticam a fragmentação da política fiscal e denunciam a actuação de
um BCE, disposto a proporcionar abundante liquidez aos bancos, enquanto
abandona os Estados endividados, que suportam os ataques especulativos. Como
proposta política, reclamam a abolição do Pacto de Estabilidade, a criação de
uma autoridade orçamental e a modificação dos estatutos do BCE, para que possa
conceder empréstimos aos Estados que atravessam dificuldades. Num arrebato de
ingenuidade, chegam, inclusive, a falar de um “euro bom”, com o qual poderia
estabelecer-se um salário mínimo europeu, para reduzir os diferenciais de
competitividade entre os países.
Trata-se de uma quimera, que
paralisou, durante décadas, boa parte da esquerda e do movimento sindical e que
bloqueia a construção de uma alternativa, ao serviço das classes populares do
nosso país. A zona euro carece de um Estado único europeu e não há nenhuma
expectativa de que possa ser criado, num futuro próximo. A unificação da
política orçamental suporia uma completa reestruturação da soberania, em toda a
União Europeia, construída a partir de uma rigorosa hierarquia de Estados e de
um cuidadoso cálculo de interesses nacionais, e necessitaria de um consenso,
que não vai acontecer. Qualquer reforma possível iria respeitar a hierarquia de
poder existente, caracterizada pelo domínio dos países da zona central e muito especialmente
da Alemanha. Para expressar esta ideia com maior precisão: o euro foi o meio
utilizado para forjar a hegemonia do capital alemão, que se impõe,
inexoravelmente, no cenário europeu e impede a possibilidade de realização de
um programa que responda às necessidades das maiorias sociais.
Na nossa opinião, qualquer
agenda política que pretenda romper, realmente, com o neoliberalismo, mesmo num
sentido reformista, deve encarar seriamente a saída do euro e enfrentar-se à
União Europeia como tal. Como refere Costas Lapavitsas (2), a única saída progressista
para o nosso povo consiste em abandonar a zona euro e recuperar o controle da
soberania, no quadro de uma transferência radical do poder económico e social
para o Trabalho. Uma estratégia que começa com o não pagamento da dívida
soberana e se amplia com uma saída do euro, que permita ao nosso país escapar
do cataclismo da desvalorização interna, imposta pela União Europeia. O nosso
país tem futuro, mas um futuro digno passa, necessariamente, por romper com
esta Europa e com as instituições desta Europa.
_____________
(1) NAPOLEONI, L. Democracia en venta. Cómo la crisis económica ha derrotado la política.
Barcelona, Paidós, 2013.
(2) LAPAVITSAS, C. Crisis en la eurozona. Madrid, Capitán Swing, 2013.
UNIÃO EUROPEIA: UMA NOVA COLONIZAÇÃO
(II)
A União Europeia foi
construída à força de falácias. Desde a sua criação, com a Comunidade Económica
Europeia, em 1961, a defesa da paz e da liberdade apareceram como objectivos
idealizados, num espaço supranacional, aparentemente baseado em relações de
igualdade e solidariedade entre os povos europeus. Este ideal actuou como
poderoso engodo para os cidadãos do sul da Europa, muito especialmente para os
espanhóis, portugueses ou gregos, que saíam das suas ditaduras com ânsia de
entrar no que parecia o clube da democracia e da prosperidade. Para esta
idealização contribuiu, de forma notável, o propagandeado crescimento económico
que, no âmbito da antiga UE a 15, se produziu (mais em benefício de uns que de
outros), durante quase duas décadas e que dotou de legitimidade e de um
atractivo inegável o projecto europeu.
Contudo, cedo se demonstrou
que aquele “clube” não era garantia nem de democracia, nem de prosperidade, mas
uma armadilha para inibir a primeira e arrumar de vez a segunda. Na realidade,
e como vimos num texto anterior, a armadilha europeia encobria uma nova
colonização, baseada em relações de força e caracterizada pelo domínio dos
países do norte europeu, fundamentalmente da Alemanha. O Tratado de Maastricht
e o aparecimento do euro desencadearam uma guerra comercial, que devastou as
economias dos países periféricos e está a caminho de fazer o mesmo com os
sistemas políticos, destruindo a soberania e desmantelando o bem-estar dos
Estados que se encontram em dificuldades. Cedo se evidenciou que aquela
prosperidade derivava de um prévio e continuado desenvolvimento económico e
social, conseguido a nível nacional por Estados configurados no
constitucionalismo social do pós-guerra, com dinâmicas intervencionistas e políticas
redistributivas, que a união económica e monetária eliminou por completo.
Trata-se, nas palavras de Emmanuel Todd, da negação da Europa.
Neste
contexto, considera-se imprescindível ultrapassar as margens impostas e
atrevermo-nos a encarar a ruptura com as limitações que impedem o avanço de um
programa, realizável, de transformação social. Na nossa opinião, a saída do
euro constitui uma alternativa necessária, para recuperar a soberania e superar
a gravíssima crise que atravessamos. Tratar-se-ia, juntamente com a negação a
pagar a dívida ilegítima, do primeiro passo de uma estratégia constituinte, que
pretenda o reequilíbrio da economia, no quadro de uma deslocação do poder
económico e social para o Trabalho, situando o Estado no posto de comando da
economia.
A estratégia tem numerosos e
diferentes escalões. De início, é previsível que a desvalorização monetária
provoque um aumento da dívida externa, já que teria de liquidar-se numa moeda
muito mais valiosa que a nossa e seria impossível continuar a satisfazê-la. No
que respeita à dívida pública (à volta de 300.000 milhões de euros) parece
ineludível a suspensão dos pagamentos e a realização de uma auditoria pública,
para assegurar um corte substancial, que aligeire o peso esmagador da dívida
sobre a nossa economia. Consideramos, em particular, que deveria declarar-se
ilegítima a contraída pelo Estado para a reestruturação e resgate do sistema
financeiro, que implicou uma obscena socialização das perdas acumuladas pela
banca, no financiamento das bolhas imobiliárias e da Bolsa.
No que diz respeito à dívida
privada, os bancos estariam sob pressão e teriam que enfrentar falências. As
tensões que o sector financeiro experimentaria tornariam indispensável a sua
nacionalização e a criação de uma banca pública, com o fim de garantir os
depósitos e assegurar um financiamento estável às pequenas e médias empresas.
Além disso, e fundamentalmente, o controle público do crédito tornaria possível
afrontar os desequilíbrios de fundo, que provocaram a crise, convertendo a
banca pública num instrumento chave para reverter a financiarização da economia
e transitar de um modelo dependente, baseado na especulação, para um modelo
baseado na economia real, produtiva e industrial.
Paralelamente,
o Estado deveria nacionalizar os sectores estratégicos (serviços públicos,
transporte, energia e comunicações) e promover uma política de investimentos
públicos que, tendo a protecção e defesa do meio ambiente como pilar
fundamental, contribuísse para modificar e renovar a estrutura produtiva do
país, travando os processos de desindustrialização e especialização produtiva,
que derivam de uma inserção assimétrica na economia europeia. Como alguns
autores destacaram, a crise económica está a provocar uma preocupante
deterioração da nossa capacidade produtiva, motivada pela debilidade da
actividade investidora, descapitalização do tecido industrial e desqualificação
da força de trabalho, aprofundando a fractura produtiva, que separa o centro da
periferia (1). Neste contexto, a reconversão do
modelo produtivo torna-se uma tarefa urgente, sob pena de nos metermos numa
rápida e dramática transição para o subdesenvolvimento. Em suma, trata-se de
iniciar uma trajectória de crescimento diferente, caracterizada pela
intervenção pública na economia, pela colaboração de um sistema bancário
público e respeito pelo princípio de sustentabilidade ecológica.
Como
corolário do que se disse atrás, a estratégia constituinte teria que abordar
dois aspectos cruciais para deter e reverter a ofensiva neoliberal: uma reforma
fiscal progressiva e uma profunda reestruturação do mercado de trabalho, como
expressão de uma nova racionalidade económica, que sirva os interesses da
maioria social. Com efeito, o alargamento da base tributável aos sectores mais
poderosos e a perseguição à fraude fiscal permitiriam expandir a despesa
pública e melhorar as prestações sociais, especialmente a Saúde e a Educação,
que sofreram uma importante deterioração, como consequência dos cortes
orçamentais. De igual modo, seria possível a reorganização do sistema de
pensões, transferindo recursos do orçamento geral do Estado, para garantir a
sustentabilidade do sistema e do poder aquisitivo das prestações (2).
No
que diz respeito ao mercado de trabalho, é urgente uma resposta contundente e
efectiva à emergência social, provocada pela situação de desemprego e
precariedade generalizados, otorgando à legislação laboral um necessário
protagonismo político. Antes de mais, enfrentamo-mos com a necessidade de
desandar o caminho andado durante as duas últimas décadas, retomando a criação
de emprego decente, como eixo nuclear da política económica. Neste sentido, as
últimas reformas laborais, aprovadas pelo PSOE (2010-11) e PP (2012-13) devem
ser expressamente derrogadas. As novas normas laborais deveriam incentivar a
criação de emprego decente, estável e com salários dignos, melhorar as
condições de trabalho, prestando uma atenção especial à igualdade efectiva
entre mulheres e homens, à corresponsabilidade e à inserção laboral da
juventude, assim como ao reforço da negociação colectiva. Partindo desta base,
uma das estratégias para combater o desemprego, permitindo uma saída
progressista e solidária à grave situação actual, é a redução do horário de
trabalho, de forma generalizada, para facilitar a colocação dos trabalhadores
desempregados. Esta medida estratégica deveria ser complementada com um aumento
significativo do salário mínimo e com a extensão da protecção no desemprego,
com o objectivo de contrariar os efeitos mais nocivos do ajustamento interno e
dar início a um modelo diferente de distribuição da riqueza produzida pela
sociedade.
Nos
parágrafos anteriores, resumimos a estratégia que, em nossa opinião, permitiria
superar a dinâmica colonial em que nos encontramos, depois da implantação do
euro. É claro que o emprego do termo “constituinte” tem um significado preciso
e congruente com o programa anteriormente esboçado: a chave está em impulsar um
processo constituinte, para realizar uma transição democrática completa, que
resolva as graves carências, arrastadas desde a ditadura e que reflicta um novo
equilíbrio de forças entre classes e géneros. Não pode haver um reequilíbrio da
economia a favor dos trabalhadores sem uma
profunda transformação do Estado numa direcção republicana,
plurinacional e democrática, com pleno respeito pelo direito dos povos a
decidir. Uma transformação que reflicta uma grande aliança político-social para
substituir mecanismos de governo ineficientes e corruptos por transparência e
participação popular permanentes. Esta aliança existe, de maneira potencial, na
nossa sociedade e poderia materializar-se, se a esquerda política e social se
aglutinasse, numa mudança radical, à volta de uma estratégia constituinte, que
dispute a hegemonia à oligarquia.
________
[1] ÁLVAREZ PERALTA, I.; LUENGO ESCALONILLA, F. y UXÓ GONZÁLEZ, J. Fracturas
y crisis en Europa. Madrid, Clave Intelectual, 2013.
* Héctor Illueca, Doutor em Direito e Inspector do Trabalho e
Segurança Social
Adoración
Guamán, Doutora em Direito e Professora de Direito do Trabalho e Segurança Social
Os
originais destes textos encontram-se em: