O QUE ELES ESCONDEM

terça-feira, 16 de dezembro de 2014


Os meios de comunicação social ignoraram o discurso do presidente russo, Putin, proferido a 24 de Outubro deste ano, no XI Encontro Internacional de Valdai, subordinado ao tema “A Ordem Mundial: Novas Regras ou um Jogo sem Regras”.
Por esta razão, e apesar de não termos especial simpatia pelo personagem, decidimos traduzir e divulgar o seu discurso, pelo diagnóstico realista que faz da actual situação mundial.
O texto original, em russo, e a sua tradução em inglês podem ser consultados na página da presidência russa: http://eng.kremlin.ru/news/23137
A nossa tradução foi feita a partir da tradução para espanhol, revista e corrigida pelo politólogo e sociólogo argentino Atílio Boron e que se pode encontrar no seu blogue: http://www.atilioboron.com.ar/2014/11/26.html#more
 

 
Colegas, senhoras e senhores, amigos,

É um prazer dar-lhes as boas-vindas a este XI encontro do Clube Valdai de Discussão Internacional.
Já se disse aqui que, este ano, o clube tem novos co-organizadores, entre eles organizações não-governamentais russas, grupos de especialistas e grandes universidades. Além disso, foi expressa a ideia de ampliar a discussão para incluir não só a problemática russa, mas, também, questões de política e economia globais.
Espero que estas mudanças organizativas e de conteúdo reforcem as posições do clube como um importante foro de discussão e de reunião de especialistas. Com isso, espero que o “espírito de Valdai” possa manter-se – liberdade, abertura, possibilidade de expressar as mais diferentes opiniões e, deste modo, as opiniões sinceras.
Neste sentido, quero dizer que não vou decepcioná-los e falarei clara e sinceramente. Algumas coisas podem parecer duras, mas, se não falarmos directa e sinceramente do que realmente pensamos, não teria sentido reunirmo-nos nestes moldes. Seria melhor, nesse caso, manter os encontros diplomáticos, onde ninguém diz nada com sentido claro e real e, recordando as palavras de um famoso diplomata, darmo-nos conta de que os diplomatas têm línguas próprias para não dizer a verdade.
Reunimo-nos aqui com outros objectivos: Reunimo-nos para falar sinceramente. Hoje, necessitamos franqueza e dureza nas valorações, não para nos atacarmos mutuamente, mas para tentar ir ao fundo das questões e entender o que , na realidade, sucede no mundo, por que razão é menos seguro e menos previsível, por que razão os riscos crescem por todo o lado.
A discussão de hoje teve lugar sob o tema “Novas Regras ou Jogo sem Regras” Na minha opinião, esta formulação descreve muito exactamente o histórico ponto de inflexão em que nos encontramos e a escolha que todos teremos de fazer.
A tese de que o mundo contemporâneo está a mudar muito rapidamente, evidentemente, não é nova. E sei que se falou disso durante a discussão de hoje. É verdade que é difícil não nos darmos conta das dramáticas transformações na política global, na economia, na vida social, na esfera das tecnologias sociais, da informação, da produção.
Peço, desde já, desculpa se repito o que foi expresso por alguns participantes neste foro. É difícil evitá-lo, os senhores falaram em pormenor, mas vou expressar o meu ponto de vista, que pode coincidir ou ser diferente do expendido pelos participantes do foro.
Não nos esqueçamos, ao analisar a situação actual, das lições da História. Em primeiro lugar, as mudanças na ordem mundial – e os acontecimentos que estamos a presenciar hoje são eventos desta escala – foram acompanhadas, regra geral, se não por uma guerra global ou choques globais, por uma cadeia de conflitos intensos de carácter local. Em segundo lugar, a política mundial é, sobretudo, acerca da liderança económica, de questões de guerra e paz e de dimensão humanitária, incluindo os direitos humanos.
No mundo, acumularam-se numerosas contradições. E devemos perguntar-nos, sinceramente, uns aos outros se dispomos de uma rede de segurança fiável. Por desgraça, não há garantias de que o sistema existente de segurança global e regional possa proteger-nos de graves turbulências. O sistema foi seriamente debilitado, fragmentado e deformado. As instituições internacionais e regionais de relações económicas, políticas e culturais vivem tempos difíceis.
Sim, muitos mecanismos de garantia da ordem pacífica foram criados há bastante tempo, sobretudo como consequência da Segunda Guerra Mundial. Permitam-me sublinhar que a solidez deste sistema se baseava não só no equilíbrio de forças e no direito dos vencedores, mas, também, no facto de os “pais fundadores” deste sistema de segurança se relacionarem, respeitosamente, entre si, não tentavam apertar ou esmagar os outros, mas tratavam de chegar a acordos.
O importante é que este sistema necessita desenvolver-se e, apesar de todos os seus defeitos, necessita ser capaz de conter os problemas mundiais existentes dentro de certos limites e de regular a intensidade da natural competitividade entre países.
Estou convencido de que não podemos tomar este mecanismo de pesos e contrapesos, que construímos ao longo das décadas passadas, com tanto esforço e dificuldades, e destruí-lo, sem construir algo em seu lugar. Neste caso, não haveria instrumentos, excepto a força bruta. O que necessitamos é de levar a cabo uma reconstrução racional e adaptá-la às novas realidades do sistema de relações internacionais.
Contudo, os Estados Unidos, que se declaravam a si mesmos vencedores da Guirra Fria, pensaram que não havia nenhuma necessidade disso. E, em vez de estabelecerem um novo equilíbrio de poder, condição indispensável para a ordem e estabilidade, pelo contrário, deram passos que conduziram o sistema a uma aguda e profunda desestabilização.
A Guerra Fria terminou. Mas não o fez com um tratado de paz, mediante acordos compreensíveis e transparentes de observância das normas e padrões existentes ou criação de novos. Isto criou a impressão de que os chamados “vencedores” da Guerra Fria decidiram pressionar os acontecimentos e redesenhar o mundo de modo a servir a satisfação das suas necessidades e interesses. E se o sistema existente de relações internacionais, o direito internacional e os pesos e contrapesos em curso entorpeciam a realização desses objectivos, então o sistema era denunciado como inválido e antiquado e promoviam a sua imediata demolição.
Perdão pela analogia, mas é assim que se comportam os novos ricos, que, de repente, obtêm uma grande riqueza, neste caso na forma de domínio mundial, liderança mundial. E, em vez de, com esta riqueza, comportarem-se sabiamente e com cuidado, inclusivamente, claro está, no seu próprio benefício, penso que fizeram muitos disparates.
Começou um período de diferentes interpretações e deliberados silêncios, na política mundial. Sob o ataque do niilismo legal, o direito internacional tem vindo a retroceder passo a passo. A objectividade e a justiça foram sacrificadas no altar da conveniência política. As normas jurídicas foram substituídas por interpretações arbitrárias e valorações enviesadas. Além disso, o controle total dos meios de comunicação globais permitiu fazer do branco preto do preto branco.
Nas condições de domínio de um país e seus aliados – ou dito de outra forma, os seus satélites -, a procura de soluções globais converteu-se, frequentemente, numa tentativa de impor as suas receitas universalmente. As ambições deste grupo cresceram tanto que as políticas acordadas nos corredores do poder são apresentadas como se fossem a opinião de toda a comunidade internacional. Mas, isso não é assim.
O próprio conceito de “soberania nacional”, para a maioria dos países, converteu-se em algo negativo. Em essência, foi proposta a seguinte fórmula: quanto maior for a lealdade ao único centro de poder mundial, tanto maior será a legitimidade deste ou daquele regime de governo. Mais logo teremos uma discussão livre e, com todo o gosto, responderei às perguntas e gostaria, também, de exercer o meu direito a fazer perguntas. Mas, no decurso desta discussão, tentem refutar a tese que acabo de formular.
As medidas contra os que recusam submeter-se são bem conhecidas e já foram postas em prática muitas vezes. Incluem o uso da força, pressão económica e propagandística, ingerência nos assuntos internos, recurso a uma certa legitimação “supra-legal” quando há que justificar uma solução ilegal neste ou naquele conflito e o derrube de regimes molestos. Nos últimos tempos, fomos testemunhas de uma chantagem aberta contra determinados líderes. Não é em vão que o chamado “grande irmão” gasta milhares de milhões de dólares em manter todo o mundo, incluídos os seus aliados mais chegados, sob vigilância.
Perguntemo-nos até que ponto vivemos confortavelmente, seguros e felizes, num mundo assim; até que ponto é justo e racional. Será que não temos motivos verdadeiros para nos preocuparmos, discutir ou fazer perguntas incómodas e inoportunas? Será que a excepcionalidade dos Estados Unidos, tal como exercem a sua liderança, são, realmente, uma bênção para todos nós e a sua contínua ingerência nos assuntos de todo o mundo está a trazer a paz, prosperidade, progresso, crescimento, democracia e nós tenhamos, simplesmente, que relaxar e gozar?
Permito-me dizer que não, que não é o caso, em absoluto. O diktat unilateral e a imposição dos próprios modelos produz o efeito contrário: em vez de solucionar os conflitos, eles sobem de intensidade; em vez de estados soberanos e estáveis, vemos uma crescente disseminação do caos e, em vez de democracia, o apoio a um muito duvidoso grupo, que vai dos neofascistas ao radicalismo islâmico.
E por que razão apoiam esta gente? Porque os utilizam, numa determinada etapa, como instrumento para alcançar os seus fins, depois, queimam as mãos e recuam.
Fico sempre surpreendido quando vejo os nossos parceiros a cair no mesmo buraco, isto é, a cometer o mesmo erro, uma e outra vez.
Numa certa altura, financiaram movimentos islamitas extremistas para lutar contra a União Soviética. Esses grupos adquiriram experiência de combate no Afeganistão e daí logo saíram os talibãs e Al-Qaeda. O Ocidente, se não os apoiou, pelo menos fechou os olhos e eu diria que deu informação e apoio político e financeiro à invasão, pelos terroristas internacionais, da Rússia (nós não nos esquecemos disto) e dos países da Ásia Central.Só depois dos horríveis ataques cometidos nos Estados Unidos é que despertaram perante a ameaça comum do terrorismo. Recordo que, então, fomos os primeiros a apoiar o povo dos Estados Unidos da América, reagimos como amigos e parceiros a esta terrível tragédia do 11 de Setembro.
Nas minhas conversas com os líderes europeus e dos Estados Unidos, falo sempre da necessidade de uma luta conjunta contra o terrorismo, como tarefa global. Nesta tarefa, não nos podemos render e resignar perante a ameaça, tão-pouco podemos dividi-la em partes separadas, usando uma dupla bitola. Ao princípio, estiveram de acordo connosco, mas, em breve, tudo voltou a ser como antes. Primeiro, a operação militar no Iraque e, em seguida, na Líbia. Este país ficou, realmente, à beira da dissolução. Por que é que a Líbia foi empurrada para esta situação? Agora, está em perigo de destruição total e converteu-se num campo de treino de terroristas. Só a vontade e a inteligência da actual direcção do Egipto permitiu, a este crucial país árabe, sair do caos e do domínio total do extremismo. Na Síria, como em tempos passados, os Estados Unidos e os seus aliados começaram a financiar e a armar directamente os rebeldes, permitindo-lhes engrossar as suas fileiras com mercenários de diferentes países. Permitam-me perguntar: de onde obtêm estes rebeldes o dinheiro, as armas e os especialistas militares? De onde vem tudo isso? Por que razão o Estado Islâmico se converteu num grupo tão poderoso, essencialmente numa real força armada? No que diz respeito ao financiamento, hoje, o dinheiro não provém apenas das drogas, cuja produção, por certo, aumentou em várias ordens de grandeza, e não apenas numa pequena percentagem, durante a presença das forças internacionais no Afeganistão. Os senhores sabem isto, certamente. O financiamento provém, também, da venda do petróleo, da sua extracção e transporte, nos territórios controlados pelos terroristas. Vendem-no a preços de dumping e há alguém que o compra, o revende, ganha dinheiro com isso, sem pensar que está a financiar os terroristas, que, cedo ou tarde, virão ao seu território semear a morte no seu próprio país.
E os recrutas, de onde vêm os novos recrutas? No Iraque, depois de Saddam Hussein ter sido derrubado, as instituições estatais, incluindo o exército, ficaram em ruínas. Nessa altura, dissemos: tenham muito, muito cuidado. Vocês estão a mandar essa gente para as ruas e que vai ela fazer? Não esqueçam que – justamente ou não – eles estavam em posições de mando de uma potência regional relativamente grande. Em que é que os estão, agora a converter?
Qual foi o resultado? Dezenas de milhares de soldados e oficiais, antigos activistas do partido Baaz, atirados para a rua, juntaram-se às fileiras dos rebeldes. Estará aí a chave da eficácia do Estado Islâmico, o ISIS? Actuam de uma maneira muito eficaz, do ponto de vista militar, é gente muito profissional. A Rússia advertiu, em repetidas ocasiões, para o perigo de acções armadas unilaterais, as ingerências nos assuntos de estados soberanos e o namoro a grupos extremistas e radicais. Insistimos na necessidade de incluir os grupos que lutam contra o governo central da Síria, incluído o ISIS, na lista de organizações terroristas. Mas vimos algum resultado? Foi um apelo em vão.
À vezes temos a impressão de que os nossos colegas e amigos lutam constantemente contra os resultados da sua própria política, que dedicam os seus esforços a lutar contra riscos que eles próprios criaram, pagando, por isso, um preço cada vez maior.
Colegas, este período de dominação unipolar demonstrou claramente que o domínio de um só centro de poder não leva ao aumento da governabilidade dos processos globais. Pelo contrário, esta construção instável mostrou a sua incapacidade para lutar contra ameaças como os conflitos regionais, o terrorismo, o narcotráfico, o fanatismo religioso, o chauvinismo e o neonazismo. Ao mesmo tempo, abriu um amplo caminho para um hipertrofiado orgulho nacional, manipulando a opinião pública, para que consinta que o forte acosse e suprima o mais débil.
Essencialmente, o mundo unipolar é simplesmente, um meio para justificar o domínio sobre povos e países. O mundo unipolar converteu-se em algo demasiado incómodo, uma carga demasiado pesada e incontrolável, inclusive para o seu autoproclamado líder. Comentários do género ouviram-se aqui e eu estou totalmente de acordo com isso. Daí as actuais tentativas, numa nova etepa histórica, de recriar algo parecido a um mundo quasi-bipolar, como um modelo conveniente de perpetuação da liderança americana. É irrelevante quem ocupa o lugar do “centro do mal” na propaganda americana, o antigo lugar da URSS, como principal adversário. Poderia ser o Irão, como país que tenta aceder à tecnologia nuclear; a China, como primeira economia do mundo; ou a Rússia, como superpotência nuclear.
Hoje, vemos, de novo, tentativas de fragmentar o mundo, traçar novas linhas de divisão, estabelecer coligações criadas não “a favor de”, mas “contra” quem quer que seja, criar, de novo, a imagem de um inimigo, como foi feito durante a Guerra Fria, e conseguir o direito a liderar, ou se preferirem, o direito a ditar condições. Era assim como se tratava a situação durante a época da Guerra Fria. Todos o compreendemos e sabemos. Aos seus aliados, os Estados Unidos diziam sempre: “Temos um inimigo comum, um rival terrível, é o centro do mal e nós estamos a defender-vos dele. Por isso, temos o direito a dirigir-vos, obrigar-vos a sacrificar os vossos interesses políticos e económicos e fazer-vos partilhar os custos desta defesa colectiva, mas seremos nós, evidentemente, a tratar disso”. Em resumo, num mundo novo e em mudança, vemos hoje, outra vez, a tentativa de reproduzir estes modelos conhecidos de condução global, para garantir a posição excepcional dos Estados Unidos e colher dividendos políticos e económicos.
Mas estes objectivos estão, crescentemente, divorciados da realidade e em contradição com a diversidade do mundo e criarão, indefectivelmente, enfrentamentos e reacções de resposta que, finalmente, terão o efeito contrário ao pretendido. Vemos todos o que sucede quando a política se mistura, imprudentemente, com a economia e a lógica da confrontação, que só prejudica as próprias posições e interesses económicos, inclusive os interesses económicos nacionais.
Os projectos económicos conjuntos e os investimentos mútuos aproximam, objectivamente, os países, ajudam a suavizar os problemas actuais das relações entre estados. Contudo, hoje em dia, a comunidade económica global sofre uma pressão sem precedentes, por parte dos governos ocidentais. De que negócios, de que pragmatismo e conveniência económica podemos falar , quando ouvimos slogans como “a pátria está em perigo”, “o mundo livre está ameaçado” e “a democracia está em risco”? Perante isto, todos (no Ocidente) necessitam mobilizar-se. Mas, estes slogans são os que constituem uma verdadeira política de mobilização.
As sanções estão a minar as bases do comércio mundial, as normas da OMC e os princípios da inviolabilidade da propriedade privada. Golpeiam fortemente o modelo liberal de globalização, baseado nos mercados, a liberdade e a competitividade; um modelo, permitam-me recordá-lo, cujos maiores beneficiários foram precisamente os países ocidentais. Agora, arriscam-se a perder a confiança de que gozavam como líderes da globalização. Nós interrogamo-nos: era necessário fazer isto? No fim de contas, o bem-estar dos próprios Estados Unidos depende, em grande medida, da confiança dos investidores, dos detentores estrangeiros de dólares e títulos do Tesouro americano. Agora, a confiança está a ser minada e sinais de desilusão acerca dos frutos da globalização aparecem em muitos países. O precedente de Chipre e a motivação política das sanções só acentuarão as tendências para o fortalecimento da soberania económica e financeira dos países, ou uniões regionais, com o objectivo de procurar modos de se protegerem dos riscos das pressões externas. Assim, cada vez mais países tentam sair da dependência do dólar e criam sistemas financeiros e comerciais alternativos e novas moedas de reserva. Na minha opinião, os nossos amigos americanos estão, simplesmente, cortando o ramo em que estão sentados. Não há que misturar a política com a economia, mas é precisamente isso que está acontecendo, agora. Pensava, e continuo a pensar, que as sanções motivadas politicamente são um erro, que traz prejuízos a todos, mas estou seguro de que, mais tarde, falaremos disto.
Sabemos como se tomaram essas decisões e quem exerce a pressão. Mas, permitam-me chamar a atenção sobre isto: a Rússia não se vergará perante as sanções, nem será prejudicada por isso, nem a verão bater à porta de alguém a mendigar ajuda. A Rússia é um país auto-suficiente. Vamos trabalhar dentro do ambiente económico internacional existente, desenvolver a nossa produção e tecnologia e actuar de forma decidida para realizar as transformações que sejam necessárias. A pressão exterior, como ocorreu em anteriores ocasiões, só terá como resultado consolidar a nossa sociedade, manter-nos alerta e concentrados nos nossos principais objectivos de desenvolvimento. As sanções, evidentemente, são um estorvo. Tentam, com elas, prejudicar-nos, bloquear o nosso desenvolvimento, isolar-nos política, económica e culturalmente, isto é, condenar-nos ao atraso. Mas, deixem-me dizer-lhes, novamente, que hoje o mundo é um lugar muito diferente. Não temos a menor intenção de nos fecharmos, elegendo um caminho de desenvolvimento confinado, que nos leve a viver em autarcia. Estamos sempre dispostos ao diálogo, incluindo a normalização das relações das relações económicas e políticas. Contamos, para isso, com as atitudes e comportamentos pragmáticos das comunidades de negócios dos principais países.
Ouve-se, hoje, afirmar que a Rússia vira as costas à Europa – ouviu-se, seguramente, no decurso desta discussão – e que está procurando outros parceiros comerciais, sobretudo na Ásia. Quero dizer que isso não é assim, de modo nenhum. A nossa política activa, na região Ásia-Pacífico, não começou ontem, nem como resposta às sanções, sendo uma política iniciada há muitos anos. Tal como muitos outros países, os ocidentais incluídos, nós vemos que a Ásia tem um papel cada vez maior no mundo, tanto na economia, como na política, e não podemos dar-nos ao luxo de subestimar ou ignorar estes desenvolvimentos. Quero sublinhar, de novo, que todos o fazem e nós fá-lo-emos, tanto mais que uma parte significativa do nosso território está na Ásia. Por que deveríamos abster-nos de utilizar a nossa vantagem competitiva nesta área? Isso seria simplesmente miopia, uma grave falta de visão, a longo prazo.
Desenvolver relações económicas com esses países e realizar projectos conjuntos de integração criam, também, grandes incentivos para o nosso desenvolvimento interno. As actuais tendências demográficas, económicas e culturais dizem-nos que a dependência de uma única superpotência diminuirá, objectivamente, Isto é o que especialistas europeus e norte-americanos têm dito e escrito, também eles. Provavelmente, os desenvolvimentos na política mundial reflectirão os mesmos factos que estamos vendo na economia global: uma competitividade forte, em nichos específicos, e frequentes mudanças de líderes, em áreas específicas. Isto é inteiramente possível.
É indubitável que os factores humanos – educação, ciência, saúde, cultura – terão um papel crescente na competitividade global. Isto, por seu lado, tem um forte impacto nas relações internacionais, porque a eficácia deste soft power dependerá, em grande medida, do êxito real na formação do capital humano, mais do que em sofisticados truques de propaganda.
Ao mesmo tempo, a formação do chamado mundo policêntrico (também quero chamar a atenção para isto, estimados colegas), em e por si mesmo, não melhora a estabilidade; de facto, o mais provável é o contrário. O objectivo de conseguir um equilíbrio global transforma-se num complicado quebra-cabeças, numa equação com muitas incógnitas.
Que nos espera, portanto, se escolhermos não optar por esses regras - ainda que as saibamos estrictas e inconvenientes - mas viver sem qualquer regra? Precisamente, este cenário é inteiramente possível e não o podemos descartar, dadas as tensões da situação global. Pode-se fazer muitos prognósticos, observando as tendências actuais, mas, por desgraça, não são optimistas. Se não criarmos um sistema claro de obrigações mútuas e de acordos, se não construirmos um mecanismo de condução e resolução das situações de crise, os sintomas da anarquia global aumentarão, inevitavelmente.
Já hoje vemos um rápido crescimento das possibilidades de uma série de violentos conflitos, com participação directa ou indirecta das grandes potências. E os factores de risco incluem, não só os tradicionais confrontos entre países, mas, também, a instabilidade interna de alguns países, sobretudo dos situados na intersecção dos interesses geopolíticos das grandes potências ou na fronteira das grandes zonas histórico-culturais, económicas e civilizacionais.
A Ucrânia, sobre a qual, estou certo, se discutiu muito e de que falaremos ainda mais, é um dos exemplos deste tipo de conflitos, que afectam o equilíbrio mundial de forças, e creio estar longe de ser o último. Daí vem a sequente ameaça real de destruição do sistema de acordos sobre limitação e controle de armas. E o começo deste processo foi provocado pelos Estados Unidos, quando, em 2002, e de forma unilateral, abandonou o Tratado de Mísseis Antibalísticos e, depois, começou, e hoje continua activamente, a criar o seu sistema de mísseis de defesa global.
Colegas, amigos,
Quero chamar a vossa atenção para o facto de não termos sido nós quem começou esse processo. Estamos a voltar àqueles tempos em que, em lugar do equilíbrio de interesses e garantias mútuas, era o medo, o risco da autodestruição, que afastava as nações do conflito directo. À falta de instrumentos legais e políticos, as armas voltam uma vez mais ao centro da agenda global. São utilizadas onde convém e como convém, sem nenhuma sanção do Conselho de Segurança da ONU. E se o Conselho de Segurança recusa adoptar tais decisões, diz-se de imediato que é um instrumento antiquado e ineficaz.
Muitos Estados não vêem outras garantias da sua soberania senão criar as suas próprias bombas. Isto é extremamente perigoso. Somos partidários de conversações contínuas e insistimos na necessidade de conversações para diminuir os arsenais nucleares. Mas, discussões sérias, sem duplos critérios.
Que quero dizer? Hoje, muitos tipos de armas de grande precisão são, pela sua capacidade destrutiva, quase armas de destruição maciça. E, em caso de renúncia plena ao arsenal nuclear ou diminuição crítica do mesmo, o país que ostente a liderança na criação e produção destes sistemas de alta precisão terá uma clara vantagem militar. Romper-se-á a paridade estratégica, o que, muito provavelmente, terá um efeito desestabilizador e aparecerá a tentação de usar o chamado “primeiro ataque preventivo global”. Numa palavra, os riscos não diminuirão, mas aumentarão.
A seguinte ameaça evidente é o aumento dos conflitos étnicos, religiosos e sociais. Estes conflitos são perigosos, não só em si mesmos, mas, também, porque criam zonas de anarquia, de ausência de qualquer lei e de caos, onde se sentem bem os terroristas e os criminosos, e florescem a pirataria e o tráfico de pessoas e drogas. Por certo, os nossos colegas tentaram dirigir estes processos, utilizar os conflitos regionais e construir “revoluções coloridas”, para satisfazer os seus interesses, mas o génio escapou-se-lhes da garrafa. Parece que nem os pais da “teoria do caos controlado” sabem o que fazer com o caos provocado e aprofunda-se a divisão e as dúvidas entre eles.
Seguimos muito de perto as discussões nas elites dirigentes e entre os especialistas. Basta ler os títulos da imprensa ocidental, durante o último ano: os mesmos a quem chamavam lutadores pela democracia são, depois, caracterizados como islamitas; ao princípio, falavam de revoluções e, depois, de tumultos e revoltas. O resultado é evidente: uma maior expansão do caos global.
Colegas, dada a situação global, é o momento de começar por nos pormos de acordo sobre certas questões de princípio, o que é tremendamente importante e necessário e muito melhor do que separar-nos e regressar cada qual para o seu lado. Tanto mais quanto nos enfrentamos a problemas comuns e estamos, como se diz, no mesmo barco. O caminho lógico para sair desta situação é a cooperação entre nações e sociedades, procurando respostas colectivas aos múltiplos desafios e uma gestão comum no enfrentamento dos riscos. Claro, alguns dos nossos parceiros, por algum motivo, só se lembram disto quando convém aos seus interesses.
A experiência prática mostra que as respostas conjuntas aos problemas não são sempre uma panaceia; é evidente e há que reconhecê-lo. Além disso, na maioria dos casos, são difíceis de conseguir: não é fácil superar as diferenças dos interesses nacionais e a subjectividade dos diferentes pontos de vista, sobretudo quando se trata de países com uma tradição cultural e histórica diferente. Mas, há exemplos que demonstram que, quando há objectivos comuns e actuamos com base em critérios unificados, podemos, conjuntamente, alcançar êxitos reais.
Permitam-me recordar a solução do problema das armas químicas, na Síria, o dálogo substantivo sobre o programa nuclear iraniano e o nosso trabalho na questão norte-coreana, que também teve alguns resultados positivos. Por que não utilizar toda esta experiência, tanto para a solução de problemas locais, como globais?
Qual deveria ser o fundamento legal, político e económico da nova ordem mundial, que garanta a estabilidade e segurança, que garanta uma sã competitividade e não permita a formação de novos monopólios a bloquear o desenvolvimento? É pouco provável que alguém possa, agora, dar uma resposta acabada, absolutamente exaustiva, a esta questão. É necessário um longo trabalho, com a participação de um amplo círculo de países, empresas globais, sociedades civis e de foros de especialistas como o nosso.
Contudo, é evidente que o êxito e um resultado real só serão possíveis se os participantes-chave da vida internacional puderem harmonizar os seus interesses básicos, na base de uma lógica de auto-limitação, e derem o exemplo de liderança responsável e positiva. Há que definir, claramente, até onde podem chegar as acções unilaterais e onde e quando se deve aplicar mecanismos multilaterais. E, para melhorar a eficiência do direito internacional, devemos resolver o dilema nas acções da comunidade internacional, para garantir a segurança e os direitos humanos, o princípio da soberania nacional e a não ingerência nos assuntos internos dos países.
Este tipo de colisões leva, cada vez mais frequentemente, à ingerência estrangeira arbitrária em processos internos muito complicados e, uma e outra vez, provocam perigosos conflitos entre os principais actores mundiais. A manutenção da soberania é um elemento supremamente importante para a manutenção e reforço da estabilidade mundial.
Está claro que a discussão sobre os critérios de utilização da força externa é muito complicada; é quase impossível separá-la dos interesses dos diferentes países. Contudo, é bastante mais perigosa a falta de acordos compreensíveis para todos, quando não se estabelecem, claramente, as condições para que a ingerência seja necessária e legal. Acrescento a isto que as relações internacionais devem construir-se sobre o direito internacional, em cuja base devem estar princípios morais tais como a justiça, a igualdade e a verdade. Talvez o mais importante seja o respeito pelo parceiro e seus interesses. É uma fórmula óbvia, mas que, se for seguida, pode mudar de raiz a situação no mundo. Estou certo de que se existir vontade, podemos restabelecer o funcionamento do sistema de instituições internacionais e regionais. Não é necessário, sequer, construir algo de novo a partir do zero, isto não é um “greenfield”, um terreno virgem, tanto mais quando as instituições criadas após  a Segunda Guerra Mundial são universais e podem ser preenchidas com conteúdos modernos, adequados à condução da situação actual.
Isto é verdade em relação ao melhoramento do trabalho da ONU, cujo papel central é insubstituível. E da OSCE, o Organismo para a Segurança e Cooperação Europeias, que ao londo de 40 anos provou ser um mecanismo de garantia da segurança e cooperação na zona euro-atlântica. Há que dizer que, agora mesmo, na solução da crise no sudeste da Ucrânia, a OSCE está a ter um papel muito positivo.
À luz das mudanças fundamentais no ambiente internacional, a crescente ingovernabilidade e as diferentes ameaças obrigam-nos a forjar um novo consenso entre as forças responsáveis. Não se trata de qualquer acordo local ou de uma separação de esferas de influência, ao estilo da diplomacia clássica, ou do domínio completo e global de algum actor. Creio que se necessita de uma nova versão da interdependência. Não há que lhe ter medo. Pelo contrário, é um bom instrumento para harmonizar posições.
Isto é particularmente relevante se se levar em conta o fortalecimento e crescimento de determinadas regiões do planeta, o que comporta a exigência dos ditos polos, criando organizações regionais poderosas e elaborando normas para a sua interacção. A cooperação entre estes centros daria uma força considerável à segurança mundial, à política e economia. Mas, para haver êxito num tal diálogo, temos que partir do pressuposto de que todos os centros regionais e os projectos de integração, nascidos à sua volta, devem ter idêntico direito a desenvolver-se, de tal modo que possam complementar-se mutuamente e que ninguém os possa forçar a incorrer em conflitos ou posições artificiais. Acções destrutivas deste tipo romperiam as relações entre estados e eles mesmos atravessariam situações muito difíceis, chegando, inclusive, à sua própria destruição.
Gostaria de lhes recordar os acontecimentos do ano passado. Dissemos, então, aos nossos parceiros, tanto aos americanos como aos europeus, que decisões apressadas e às escondidas sobre, por exemplo, a integração da Ucrânia na União Europeia, comportavam grandes riscos. Não dissemos nada sobre política, falávamos apenas de economia e dizíamos que tais passos, realizados sem nenhum acordo prévio, afectava os interesses de muitas outras nações, incluindo a Rússia como principal parceiro comercial da Ucrânia, e que uma ampla discussão sobre estes temas era necessária. Por certo, recordo, relativamente a isto, a entrada da Rússia, por exemplo, na OMC requereu 19 anos, o que supôs um duro trabalho, mas conseguiu-se um consenso.
Por que trago este tema à colacção? Porque, na implementação do projecto de integração da Ucrânia, os nossos parceiros farão entrar os seus bens e serviços por uma porta traseira, para dizê-lo de algum modo, e nós não concordamos com isso e ninguém pediu a nossa opinião. Tivemos discussões sobre todos os temas relacionados com a integração da Ucrânia na EU, mas quero sublinhar que isso teve lugar de maneira totalmente civilizada, indicando os possíveis problemas, apresentando argumentos e razões. Ninguém quis ouvir-nos, nem falar connosco, dizendo-nos, simplesmente: “Não é assunto vosso, ponto. Fim da discussão”. Em vez de um diálogo amplo e compreensivo, mas, sublinho, civilizado, a controvérsia tomou outro rumo e desembocou num golpe de estado, levaram o país ao caos, ao colapso económico e social e provocaram uma guerra civil com muitíssimas vítimas. Porquê? Quando pergunto aos meus colegas a razão, não há resposta. Ninguém responde nada; é assim e ponto. Ficam todos sem resposta ou dizem que isso foi o que sucedeu. Mas, se não se tivesse alentado tais acções e atitudes, as coisas não teriam ocorrido como ocorreram. Afinal (já falei disto), o anterior presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovitch, havia assinado e aceitado tudo. Para quê fazer tudo isto, que sentido teve? É esta uma forma civilizada de resolver as questões? Parece que aqueles que organizaram mais e mais “revoluções coloridas” se consideram a si próprios uns “artistas geniais” e não podem parar.
Tenho a certeza de que o trabalho de associações de integração, as estruturas de cooperação regional, as estruturas de cooperação regional deverão construir-se numa base clara e transparente. Um bom exemplo disso é o processo de formação da União Económica Euroasiática. Os estados membros deste projecto informaram, previamente, os seus parceiros das suas intenções, dos parâmetros da nossa união e dos princípios do seu funcionamento, que estavam totalmente de acordo com as normas da Organização Mundial de Comércio.
Acrescento que também demos as boas-vindas ao início de diálogo entre as uniões europeia e euroasiática. Mas, quanto a isto, também nos hostilizaram quase sempre e tão-pouco se entende por quê: que temem? E, claro, neste trabalho conjunto, consideramos ser necessário o diálogo (falei disso muitas vezes e ouvi muitos dos nossos parceiros ocidentais), aceitar a necessidade de formação de um espaço único económico e de cooperação humanitária, que se estenda do Atlântico ao Pacífico.
Colegas, a Rússia fez a sua escolha. As nossas prioridades são o aperfeiçoamento das instituições democráticas e de economia aberta, um desenvolvimento interno acelerado, com todas as tendências positivas actuais no mundo, e a consolidação da sociedade, com base nos valores tradicionais e no patriotismo. Temos um itinerário pacífico, positivo, de integração. Trabalhamos activamente com os nossos colegas da União económica Euroasiática, na Organização de Cooperação de Shangai, com os BRICS e outros parceiros. Esta agenda está dirigida ao desenvolvimento das relações entre países, e não à sua separação. Não queremos criar nenhum bloco ou ver-nos envolvidos em nenhum intercâmbio de golpes.
Nâo têm nenhuma base aqueles que asseguram que a Rússia trata de estabelecer algum tipo de império, violando a soberania dos seus vizinhos. Tal acusação carece de fundamento. A Rússia não necessita de nenhum lugar especial, exclusivo, no mundo, quero reiterar. Respeitando os interesses de outros, queremos, simplesmente, que se tenham em conta os nossos e se respeite a nossa posição.
Todos sabemos que o mundo entrou numa época de mudanças e transformações globais e todos necessitam ter cuidado e evitar dar passos sem reflectir. Nos anos posteriores à Guerra Fria, os participantes na política mundial perderam um pouco essas qualidades. Agora, há que recordarmo-nos delas. M caso contrário, as esperanças de um desenvolvimento pacífico e estável são uma perigosa ilusão e as actuais comoções serão um prelúdio do colapso da ordem mundial.
Sim, certamente já lhes falei disto: a construção de uma ordem mundial mais estável é uma tarefa complicada, trata-se de um trabalho longo e difícil. Fomos capazes de criar umas regras de interacção, depois da Segunda Guerra Mundial; e pudemos chegar a um acordo, nos anos 70, em Helsínquia. A nossa obrigação comum é a de encontrar uma solução para esta tarefa fundamental, nesta nova etapa de desenvolvimento.
Muito obrigado pela vossa atenção.
 

domingo, 14 de dezembro de 2014



Por Boaventura Sousa Santos


 Tudo leva a crer que está em preparação a terceira guerra mundial. É uma guerra provocada unilateralmente pelos EUA com a cumplicidade ativa da UE. O seu alvo principal é a Rússia e, indiretamente, a China. O pretexto é a Ucrânia. Num raro momento de consenso entre os dois partidos, o Congresso dos EUA aprovou no passado dia 4 a Resolução 758, que autoriza o Presidente a adotar medidas mais agressivas de sanções e de isolamento da Rússia, a fornecer armas e outras ajudas ao governo da Ucrânia e a fortalecer a presença militar dos EUA nos países vizinhos da Rússia. A escalada da provocação da Rússia tem vários componentes que, no conjunto, constituem a segunda guerra fria. Nesta, ao contrário da primeira, assume-se agora a possibilidade de guerra total e, portanto, de guerra nuclear. Várias agências de segurança fazem planos já para o Day After de um confronto nuclear.

Os componentes da provocação ocidental são três: sanções para debilitar a Rússia; instalação de um governo satélite em Kiev; guerra de propaganda. As sanções são conhecidas, sendo a mais insidiosa a redução do preço do petróleo, que afeta de modo decisivo as exportações de petróleo da Rússia, uma das mais importantes fontes de financiamento do país. Esta redução trará o benefício adicional de criar sérias dificuldades a outros países considerados hostis (Venezuela e Irão). A redução é possível graças ao pacto celebrado entre os EUA e a Arábia Saudita, nos termos do qual os EUA protegem a família real (odiada na região) em troca da manutenção da economia dos petrodólares (transações mundiais de petróleo denominadas em dólares), sem os quais o dólar colapsa enquanto reserva internacional e, com ele, a economia dos EUA, o país com a maior e mais obviamente impagável dívida do mundo. O segundo componente é controlo total do governo da Ucrânia de modo a transformar este país num estado satélite. O respeitado jornalista Robert Parry (que denunciou o escândalo do Irão-contra) informa que a nova ministra das finanças da Ucrânia, Natalie Jaresko, é uma ex-funcionária do Departamento de Estado, cidadã dos EUA, que obteve cidadania ucraniana dias antes de assumir o cargo. Foi até agora presidente de várias empresas financiadas pelo governo norte-americano e criadas para atuar na Ucrânia. Agora compreende-se melhor a explosão, em Fevereiro passado, da secretária de estado norte-americana para os assuntos europeus, Victoria Nulland, “Fuck the EU”. O que ela quis dizer foi: “Raios! A Ucrânia é nossa. Pagámos para isso”. O terceiro componente é a guerra de propaganda. Os grandes media e seus jornalistas estão a ser pressionados para difundirem tudo o que legitima a provocação ocidental e ocultarem tudo o que a questione. Os mesmos jornalistas que, depois dos briefings nas embaixadas dos EUA e em Washington, encheram as páginas dos seus jornais com a mentira das armas de destruição massiva de Saddam Hussein, estão agora a enchê-las com a mentira da agressão da Rússia contra a Ucrânia. Peço aos leitores que imaginem o escândalo mediático que ocorreria se se soubesse que o Presidente da Síria acabara de nomear um ministro iraniano a quem dias antes concedera a nacionalidade síria. Ou que comparem o modo como foram noticiados e analisados os protestos em Kiev em Fevereiro passado e os protestos em Hong Kong das últimas semanas. Ou ainda que avaliem o relevo dado à declaração de Henri Kissinger de que é uma temeridade estar a provocar a Rússia. Outro grande jornalista, John Pilger, dizia recentemente que, se os jornalistas tivessem resistido à guerra de propaganda, talvez se tivesse evitado a guerra do Iraque em que morreram até ao fim da semana passada 1.455.590 iraquianos e 4801 soldados norte-americanos. Quantos ucranianos morrerão na guerra que está a ser preparada? E quantos não-ucranianos?

Estamos em democracia quando 67% dos norte-americanos são contra a entrega de armas à Ucrânia e 98% dos seus representantes votam a favor? Estamos em democracia na Europa quando uma discrepância semelhante ou maior separa os cidadãos dos seus governos e da Comissão da UE, ou quando o parlamento europeu segue nas suas rotinas enquanto a Europa está a ser preparada para ser o próximo teatro de guerra, e a Ucrânia, a próxima Líbia?

in  Visão, 11-12-2014      

 

 

 

 

 

 

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

 
 
Viagem a uma nova Bolívia
Por Ignácio Ramonet*
Os novos teleféricos urbanos, de extraordinária tecnologia futurista, mantêm, acima da cidade, um balé permanente de cabines coloridas, elegantes e etéreas como bolhas de sabão.
 
Para o viajante que volta à Bolívia após alguns anos de ausência, e que caminha lentamente pelas ruas estreitas de La Paz – cidade marcada por ravinas escarpadas a quase quatro mil metros de altitude – as transformações saltam aos olhos: já não se veem pessoas a pedir esmola, nem vendedores informais que enchiam os passeios. As pessoas vestem-se melhor, têm um ar mais saudável. E a capital tem uma aparência mais bem tratada, mais limpa, com muitos espaços verdes. Ressalta também o surgimento de novas construções. Despontaram duas dezenas de grandes imóveis e multiplicaram-se os centros comerciais; um deles tem o maior complexo de cinemas (18 salas) da América do Sul.
Mas o mais espetacular são os teleféricos urbanos, de extraordinária tecnologia futurista1, que mantêm, acima da cidade, um balé permanente de cabines coloridas, elegantes e etéreas como bolhas de sabão. Silenciosas e não poluentes. Duas linhas estão a funcionar agora, a vermelha e a amarela; uma terceira, a verde, será inaugurada nas próximas semanas, permitindo assim a criação de uma rede interligada de transporte a cabo de 11 km, a maior do mundo. Isso vai permitir que dezenas de milhares de moradores de La Paz economizem em média duas horas de viagem por dia.
Duas linhas de teleféricos já estão a funcionar, uma terceira será inaugurada em breve.Duas linhas de teleféricos já estão a funcionar, uma terceira será inaugurada em breve.

“A Bolívia muda. Evo cumpre as suas promessas”, afirmam cartazes nas ruas. E pode-se constatar que o país é de facto outro. Muito diferente daquele que conheci há apenas uma década, quando foi considerado “o Estado mais pobre da América Latina depois do Haiti.” Corruptos e autoritários na sua maioria, os seus governos passavam os anos a implorar empréstimos aos organismos financeiros internacionais, às principais potências ocidentais ou às organizações humanitárias. Enquanto isso, as grandes empresas de mineração estrangeiras pilhavam o subsolo, pagando ao Estado royalties de miséria e prolongando a espoliação colonial.
Relativamente pouco povoada (cerca de dez milhões de habitantes), a Bolívia tem superfície de mais de um milhão de quilómetros quadrados (duas Franças). As suas entranhas transbordam de riquezas: prata (faz lembrar Potosí …), ouro, estanho, ferro, cobre, zinco, tungsténio, manganês etc. O sal de Uyuni tem as maiores reservas no mundo de potássio e lítio – considerado a energia do futuro. Mas hoje, a principal fonte de rendimentos é constituída pelo setor de hidrocarbonetos: gás natural (a segunda maior reserva da América do Sul), e petróleo (em menor quantidade, por volta de 16 milhões de barris ao ano).
No decorrer dos últimos nove anos, após a chegada de Evo Morales ao poder, o crescimento económico da Bolívia foi sensacional, com uma taxa média anual de 5%. Em 2013, o crescimento do PIB atingiu 6,8%2; em 2014 e 2015, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), será igualmente superior a 5%… É o percentual mais elevado da América Latina3. E tudo isso com uma inflação moderada e controlada, inferior a 6%.
Assim, o nível material de vida duplicou4. As contas públicas, embora com importantes investimentos sociais, são igualmente controladas, a tal ponto que a balança comercial oferece resultado positivo com excedente orçamentário de 2,6% (em 2014)5. Embora as exportações, principalmente de hidrocarbonetos e de produtos de mineração, desempenhem papel importante nessa prosperidade económica, é a procura interna (+5,4%) que constitui o principal motor do crescimento. Finalmente, outro sucesso sem precedentes da gestão do ministro da economia, Luis Arce: as reservas monetárias internacionais da Bolívia agora equivalem a 47% do PIB6, colocando pela primeira vez o país em primeiro lugar na América Latina, bem à frente de Brasil, do México e da Argentina. Evo Morales indicou que a Bolívia pode deixar de ser um país endividado em nível estrutural para tornar-se um país credor. Ele revelou que “quatro Estados da região”, sem especificar quais, já solicitaram crédito ao governo …
Evo Morales: Bolívia ode deixar de ser um país endividado em nível estrutural para tornar-se um país credor. Foto de Juanky Pamies Alcubilla
 
Num país onde mais de metade da população é de origem indígena, Evo Morales, eleito em janeiro de 2006, é o primeiro índio a tornar-se presidente no decorrer dos últimos cinco séculos. E, após ter assumido o poder, esse presidente diverso rejeitou o “modelo neoliberal” e substituiu-o por um novo “modelo económico social comunitário produtivo”. A partir de maio de 2006, nacionalizou os setores estratégicos (hidrocarbonetos, indústria de mineração, eletricidade, recursos ambientais) geradores de excedentes, e investiu parte desse excedente nos setores geradores de emprego: indústria, produtos manufaturados, artesanato, transporte, agricultura e pecuária, habitação, comércio etc. Consagrou a outra parte do excedente à redução da pobreza por meio de políticas sociais (educação, saúde), aumentos salariais (para funcionários e trabalhadores do setor público), estímulos à integração (os bónus Juancito Pinto7, a pensão “dignidade”8, os bónus Juana Azurduy9) e subsídios.
Os resultados da aplicação desse modelo não se refletem apenas nos números acima, mas também num dado bem explícito: mais de um milhão de bolivianos (10% da população, portanto) saíram da pobreza. A dívida pública, que representava 80% do PIB, diminui e mal chega a 33%. A taxa de desemprego (3,2%) é a mais baixa da América Latina, a tal ponto que milhares de imigrantes bolivianos na Espanha, Argentina e Chile começam a voltar, atraídos pelo pleno emprego e notável aumento do padrão de vida.
Além disso, Evo Morales começou a tornar verdadeiro um Estado que até ao presente não era senão virtual. É claro que a vasta e torturada geografia da Bolívia (um terço de altas montanhas andinas, dois terços de planícies tropicais e da Amazónia), assim como a divisão cultural (36 nações etnolinguísticas) nunca facilitaram a integração e a unificação. Mas o que não foi feito em quase dois séculos, o presidente Morales está determinado a colocar em prática, para dar fim ao desmembramento. Isso passa, antes de tudo, pela promulgação de uma nova Constituição, aprovada por referendo, que estabelece pela primeira vez um “Estado plurinacional” e reconhece os direitos de nações diversas que coabitam no território boliviano. Em seguida, passa pelo lançamento de uma série de ambiciosas obras públicas (estradas, pontes, túneis) com o objetivo de conectar, articular, servir áreas dispersas para que os seus habitantes sintam que fazem parte de um mesmo conjunto: a Bolívia. Isso nunca tinha sido feito. É a razão por que o país teve tantas tentativas de divisão, separatismo e fracionamento.
Hoje, com todos esses êxitos, os bolivianos sentem-se – talvez pela primeira vez – orgulhosos de si. Estão orgulhosos da sua cultura indígena e das suas línguas nativas. Estão orgulhosos da sua moeda, que a cada dia ganha um pouco mais de valor em relação ao dólar. Estão orgulhosos de ter o mais elevado crescimento económico e as reservas monetárias mais importantes da América Latina. Orgulhosos das suas realizações tecnológicas como a rede de teleféricos de última geração, do seu satélite de telecomunicações Tupac Katari, da sua rede de televisão pública Bolivia TV10. Essa rede, dirigida por Gustavo Portocarrero, deu em 12 de outubro, dia das eleições presidenciais, uma demonstração notória da sua excelência tecnológica ao conectar-se diretamente – durante 24 horas ininterruptas – com os seus enviados especiais em cerca de 40 cidades do mundo (Japão, China, Rússia, Índia, Egito, Irão, Espanha etc.), onde bolivianos que vivem no exterior votaram pela primeira vez. Proeza técnica e humana que poucos canais de TV do mundo seriam capazes de conseguir.
Todas essas realizações – económicas, sociais, tecnológicas – só explicam em parte a vitória esmagadora de Evo Morales e de seu partido (o Movimiento al Socialismo, MAS) nas eleições de 12 de outubro último11. Ícone da luta dos povos indígenas e autóctones de todo o mundo, graças a este novo triunfo, Evo conseguiu romper preconceitos importantes. Ele prova que a permanência no governo não causa, necessariamente, desgastes; e que, após nove anos no poder, é possível conseguir uma reeleição esmagadora. Prova também que, ao contrário do que afirmam os racistas e colonialistas, “os índios” sabem governar e podem ser os melhores líderes que o país já teve. Prova que, sem corrupção, com honestidade e eficácia, o Estado poder ser um excelente administrador, e não uma calamidade sistemática, como pretendem os neoliberais. Finalmente, Evo prova que a esquerda no poder pode ser eficaz; que pode gerir políticas de integração e redistribuição de riquezas sem pôr em perigo a estabilidade da economia.
Mas essa grande vitória eleitoral explica-se também, e talvez sobretudo, por razões políticas. O presidente Evo Morales conseguiu vencer, ideologicamente, seus principais adversários, agrupados no seio da casta de empresários da província de Santa Cruz, principal motor económico do país. Esse grupo conservador, que tentou tudo contra o presidente – desde o ensaio de divisão do país até o golpe de Estado –, acabou finalmente por submeter-se e render-se ao projeto presidencial, reconhecendo que o país está em plena fase de desenvolvimento.
O vice-presidente Álvaro García Linera. Foto de Matthew Straubmuller

É uma vitória considerável, que o vice-presidente Álvaro García Linera explica nestes termos: “Conseguimos integrar o leste da Bolívia e unificar o país, graças à derrota política e ideológica de um núcleo político de empresários ultraconservadores, racistas e fascistas, que conspiraram para dar um golpe de Estado e financiaram grupos armados para organizar uma divisão do território oriental. Além disso, esses nove anos têm mostrado às classes médias urbanas e aos setores populares de Santa Cruz, que estavam cautelosos, que temos melhorado as suas condições de vida, que respeitamos o que foi construído em Santa Cruz e suas especificidades. Somos evidentemente um governo socialista, de esquerda, e dirigido por indígenas. Mas desejamos melhorar a vida de todos. Enfrentamos as empresas petrolíferas estrangeiras, da mesma forma que as empresas de energia elétrica, e fizemo-las dar a sua contribuição para depois, com esses recursos, dar poder ao país, principalmente aos mais pobres – mas sem afetar as posses das classes médias ou do setor empresarial. Esta é a razão por que foi possível um reencontro com o governo de Santa Cruz, e que deu tantos frutos. Nós não mudamos de atitude, continuamos a dizer e a fazer as mesmas coisas que há nove anos. Eles é que mudaram de atitude diante de nós. Desde então, começa esta nova etapa do processo revolucionário boliviano, que é a da irradiação territorial e da hegemonia ideológica e política. Eles começam a compreender que não somos seus inimigos, que é do interesse deles praticar a economia sem entrar na política. Mas se, como empresários, tentarem ocupar as estruturas do Estado e quiserem combinar política e economia, não vão conseguir. Da mesma forma, não pode ser que um militar assuma também o controlo civil, político, uma vez que eles já têm o controlo das armas.”
No seu gabinete do Palácio Quemado (palácio presidencial) o ministro da Presidência, Juan Ramón Quintana, explica isso numa frase: “Vencer e integrar”. “Não se trata – diz ele – de derrotar o adversário e abandoná-lo à sua sorte, correndo o risco de que comece a conspirar com o ressentimento do derrotado e embarque em novas tentativas de golpe. Uma vez vencido, é preciso incorporá-lo, dar-lhe oportunidade de juntar-se ao projeto nacional em que todos estão envolvidos, sob a condição de que admitam e se submetam ao facto de que a direção política, pela decisão democrática das urnas, é exercida por Evo e o MAS.”
E agora? O que fazer com uma vitória assim esmagadora? “Temos um programa12 – afirma tranquilamente Juan Ramón Quintana – queremos erradicar a pobreza, dar acesso universal aos serviços públicos básicos, garantir uma saúde e uma educação de qualidade para todos, desenvolver a ciência, a tecnologia e a economia do conhecimento, estabelecer uma administração económica responsável, ter uma gestão pública transparente e eficaz, diversificar a nossa produção, industrializar o país, alcançar a soberania alimentar e agrícola, respeitar a mãe Terra, avançar em direção a uma maior integração latino-americana e com os nossos parceiros do Sul, integrar-nos ao Mercosul e alcançar o nosso objetivo histórico, fechar a nossa ferida aberta: recuperar a nossa soberania marítima e o acesso ao mar”13.
Por sua vez, Evo Morales exprimiu o seu desejo de ver a Bolívia tornar-se o “coração energético da América do Sul”, graças ao enorme potencial em matéria de energias renováveis (hidroelétrica, eólica, solar, geotérmica, biomassa), ao invés dos hidrocarbonetos (petróleo e gás). Isso, com o complemento da energia atómica civil produzida por uma central nuclear cuja aquisição está próxima.
A Bolívia muda. Avança. E a sua metamorfose prodigiosa ainda não parou de surpreender o mundo.
20/11/2014


1 A fabricante é a empresa austríaca Doppelmayr Garaventa.
2 Ler Economía Plural, La Paz, abril 2014.
3 Ler Página Siete, La Paz, 12 outubro 2014.
4 Entre 2005 e 2013, o PIB por habitante mais que duplicou (de 1.182 dólares para 2.757 dólares). A Bolívia já não é um “país de baixo rendimento” e foi declarada “país de rendimento médio”. Ler “Bolivia, una mirada a los logros más importantes del nuevo modelo economico” em Economía Plural, La Paz, junho 2014.
5 A boa gestão das finanças públicas permitiu à Bolívia tornar-se o segundo país de maior superávit orçamentário da América Latina no curso dos últimos oito anos.
6Em números absolutos, as reservas internacionais da Bolívia são de aproximadamente 16 mil milhões de dólares. Em 2013, o PIB foi cerca de 31 mil milhões de dólares.
7 Uma quantia de 200 bolivianos anuais (23 euros) é dada a cada aluno do ensino público fundamental e médio que tenha acompanhado todas as aulas regularmente. O objetivo é lutar contra a evasão escolar.
8 Uma pensão que todos os bolivianos recebem a partir de 60 anos, mesmo aqueles que jamais contribuíram com o sistema de Previdência.
9 Uma ajuda económica de 1.820 bolivianos (cerca de 215 euros) é fornecida às mulheres grávidas e por cada menino ou menina de menos de dois anos com o objetivo de reduzir a taxa de mortalidade infantil e materna.
11 Ler, de Atilio Borón, “Por que Evo Morales venceu outra vez?” Esquerda.net, 13/10/2014.
12 “Agenda patriótica 2025: la ruta boliviana del vivir bien (Agenda patriótica 2025:o caminho boliviano do bem viver)”. Em 2025 será a festa do bicentenário da independência e da fundação da Bolívia.
13 A Bolívia fez uma consulta ao Tribunal Internacional de Justiça de Haia. Leia “El libro del mar”, Ministério de Assuntos Estrangeros, La Paz, 2014

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* Director do Le Monde Diplomatique em espanhol.

Tradução de Inês Castilho para o Outras Palavras
Adaptação para Portugal de Luis Leiria para o Esquerda.net




 

quinta-feira, 6 de novembro de 2014


OS EMPREENDEDORES

Por Julio Anguita González*

A confrontação ideológica que a esquerda vai perdendo por não comparência evidencia-se, claramente, tanto na linguagem usada nos meios de comunicação, como no quotidiano da rua. Uma das manifestações mais reiteradas é constituída pelo papel de alguns jornalistas como entrevistadores e, ao mesmo tempo, contraditores das pessoas que aceitam o diálogo. Pessoas que, por certo, costumam ser, com bastante frequência, representantes da esquerda política e ideológica.
Há uns dias, pude comprovar como o interrogador, e não entrevistador, entrava em confrontação com o seu interlocutor, porque este se tinha permitido pôr às claras a corrupção empresarial. Imediatamente, o jornalista alegou que, também ele, era um pequeno empresário e, por conseguinte, integrante dessa irmandade benéfica e filantrópica que, além de “criar riqueza”, dava trabalho. Reparem os leitores na dita expressão “dar trabalho”, oferecer emprego ou aliviar o desemprego. Considero que nós devemos começar já a contradizer todos estes sofistas, mesmo com o risco de que não nos voltem a chamar. A maioria dos leitores e dos telespectadores de rádio e televisão agradecer-nos-ão.
Com bastante ligeireza, quando não aleivosa tendenciosidade, os defensores do sistema costuma identificar, numa relação unívoca, a empresa com o empresário. É evidente que a empresa, entendida como a conjunção de trabalhadores, meios de produção e processos organizativos, com o fim de criar valor, é imprescindível. Contudo, não se pode dizer o mesmo do empresário. A História dá-nos exemplos de autogestão empresarial em empresas colectivizadas e/ou públicas, que se encarregam de deitar por terra a pretensão de unir num conjunto fechado o centro laboral e o empresário privado. A figura do empresário é contingente, a da empresa não. Por isso, deve-se separar ambos os conceitos, para evitar, assim, que a necessária existência da empresa seja associada a algo puramente acessório: o empresário.
Na linguagem política oficial, isto é, a do poder económico e dos seus alternantes representantes no Governo, a denominada “classe empresarial” é fundamental para criar emprego. Daí que, quando aparecem os seus membros ou aqueles que os representam, o discurso monotemático é o de que, sem ajudas de todo o tipo aos empresários, a criação de emprego não pode realizar-se. Como verão os leitores, a história tem raízes no imaginário colectivo do senhor feudal que, de maneira munificente e totalmente altruísta, acede a dar um salário a alguns cidadãos ou cidadãs. Este que escreve estas linhas foi testemunha, nas diferentes localidades onde exerceu a sua profissão, de como um ou outro operário agrícola dizia o quanto era bom o Sr. Fulano, porque dava trabalho. Nunca chegaram a pensar em quem teria apanhado a azeitona ou feito a ceifa se não fossem eles.
Vai sendo hora de relembrar o que aprendemos nos textos dos mestres do pensamento libertador e da experiência de vida. Sem trabalhadores ou assalariados em geral, a empresa não funcionaria. O empresário compra a força física ou mental do trabalhador, porque ela é indispensável à existência da empresa. O que acontece é que, sabendo isso, os empresários e seus coros invertem o sentido das coisas para disfarçar, ocultar e distorcer a sua autêntica natureza. Trata-se de que o trabalhador não seja consciente da sua importância e do papel que tem na produção.
Para distorcer e mascarar ainda mais a realidade, o poder inventou uma léria que, a modos de mezinha milagrosa ou banha da cobra, serve de lubrificante na tarefa de injectar na cabeça dos dominados uma boa nova: sereis como os triunfadores, pertencereis à elite, entrareis no selecto clube dos empreendedores.
A palavra empresário fica atenuada pelo novo vocábulo. Um vocábulo que, devido à sua origem semântica, soa a aventura, a romanticismo social, a forjadores de um new deal, nesta época de crise do capitalismo. Porque, além disso, na grande maioria dos casos, o ou a empreendedor ou empreendedora tem de endividar-se para montar algo que, a seguir, acaba por ser uma ferramenta de escravidão por mor de canais de comercialização, subcontratações e demais dependências de estruturas quase mafiosas do capitalismo em grande.
Creio que a esquerda, globalmente considerada, deve retomar uma das suas lutas mais importantes que, noutros tempos, serviu de consciencialização da grande massa de explorados e marginados: a luta ideológica em todas as frentes e, claro, na mais importante de todas: a linguagem.
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*Professor de História jubilado. Ex-secretário-geral do Partido Comunista de Espanha e da Izquierda Unida

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A administração do grupo Controlinveste, proprietário do Diário de Notícias, depois de ter despedido 160 trabalhadores, dos quais 64 jornalistas, nomeou um novo director para o DN, que, certamente para agrado dos patrões, dispensou colunistas de opinião como Baptista Bastos e contratou outros, entre os quais um tal Miguel Angel Belloso, "jornalista" espanhol, que se diz de direita e "liberal", esquecendo-se de colocar os prefixos "extrema" e "neo", respectivamente. Não chegava a merda que o jornal já acoita nas suas páginas, do tipo César das Neves, foi preciso ir buscar uma mierda adicional.

Hoje, não pude evitar escrever, nas caixas de comentário on-line daquele jornal, umas considerações sobre o que este Belloso ali esparramou e que pode ser lido em http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=4211571&seccao=Miguel Angel Belloso&page=-1)

O meu comentário dizia o seguinte:

"Durante o papado de João Paulo II e do seu inquisidor-mor Ratzinger, futuro Bento XVI, os sacerdotes que denunciavam a injustiça social e a repressão política foram perseguidos, uns excomungados pelo Vaticano e outros assassinados, como o jesuíta espanhol Ignacio Ellacuría, reitor da Universidade Centro-Americana de El Salvador, juntamente com outros 5 religiosos; Monsenhor Óscar Romero, abatido quando dizia missa num hospital de religiosas que cuidavam de doentes com cancro. Para o sr. Belloso, aqueles que condenam a exploração predadora do capitalismo são o diabo, aqueles que enriquecem à custa dos outros merecem a beatificação."

Não é de estranhar que estas verdades tenham sido censuradas, não pelos energúmenos que também pululam nas caixas de comentário do DN, mas pelo próprio jornal, visto o meu texto não ter  aparecido, sequer, durante um segundo. E não é de estranhar, já que o DN está nas mãos de bancos e grandes interesses económicos, entre os quais uns angolanos, o BCP, o ex-BES e o genro de Cavaco Silva, Luís Montez.

A actual administração da Controlinveste, saída de uma nova arrumação de capitais do grupo, feita em Novembro de 2013, é liderada por Daniel Proença de Carvalho, o indivíduo com mais cargos no PSI-20 (as 20 maiores empresas portuguesas, cotadas em Bolsa) e o mais bem pago. Foi ele o intermediário dos angolanos na compra de parte da Controlinveste e, até ao rebentar do escândalo BES, era membro da comissão de remunerações daquele banco. Claro, é agora o advogado principal do gatuno e vigarista Ricardo Salgado.

Toda esta gente é quem manda no DN, no Jornal de Notícias, na rádio TSF, etc. Os mesmos ou outros são donos dos restantes grandes meios de informação. Como podem eles estar interessados em que se digam as verdades, como, por exemplo, que foi a mando de capitalistas selvagens como eles que os sacerdotes da Teologia da Libertação foram assassinados ou que foram eles que provocaram a actual crise financeira e que, em vez de estarem na prisão, conseguiram que os governos lhes dessem ainda mais dinheiro e impusessem a austeridade que está a matar pessoas (1) e a pouca democracia que existe?

Esta impunidade só é possível precisamente porque têm ao seu dispor os meios onde repetem, todos os dias e até à saciedade, que se deve salvar os bancos para que a economia não afunde (quando foram os bancos que a afundaram); que o aumento da dívida é o resultado do Estado gastador (apesar de, antes da crise, a dívida ser incomparavelmente menor) ou que andámos a viver acima das nossas possibilidades (quando são eles que enriquecem sugando o Estado, através de contratos de parceria público-privada, swap, fuga aos impostos, fraude fiscal, subsídios vários, sem contar os cerca de 7.000 milhões para o BPN e 12.000 milhões para os restantes bancos, a fim de continuarem a especulação financeira, porque nem um cêntimo está a ir para a economia real).

Isto é, estamos a ser governados por um conjunto de criminosos, através de uns lacaios chamados ministros, a quem eles pagam bem o trabalho mais sujo e visível.


(1) Vários estudos empíricos de David Stuckle e colaboradores calculam que por cada 80 euros cortados por pessoa a desempregados, reformados, famílias e crianças, a mortalidade geral aumenta quase 1% (0,99%), a mortalidade por tuberculose 4,3%, por doenças cardiovasculares 1,2%, por problemas relacionados com o álcool 2,8%. (Ver David Stuckle et al., The public health effect of economic crises and alternatice policy responses in Europe: Na empirical analysis, The Lancet, 2009)


quarta-feira, 29 de outubro de 2014


 

Esses monstros chamados bancos

Por Juan Torres López*

Os bancos privados desfrutam de um privilégio extraordinário: sempre que concedem um crédito criam dinheiro. Não moedas ou notas, que é o que as pessoas comuns julgam que é o dinheiro, mas dinheiro bancário, isto é, meios de pagamento através das suas contas.

Quando recebem os depósitos dos seus clientes, os bancos não os mantêm totalmente em reserva para fazer frente aos levantamentos que aqueles solicitem. Pelo contrário, conservam em caixa apenas uma parte mínima e dispõem do resto para realizar empréstimos (por isso se diz que é um sistema bancário de reserva fraccionária).

O fenómeno é fácil de entender: Pôncio dispõe dos únicos 100 euros que economizou e deposita-os num banco. Com o seu cartão de débito ou o livro de cheques pode fazer pagamentos no valor de 100 euros. Se o banco concede um crédito de 20 euros a Pilatos, mediante uma simples anotação contabilística, este poderá gastar aqueles 20 euros, de modo que, a partir desse mesmo instante, já há 120 euros em meios de pagamento. O banco criou 20 euros de dinheiro bancário.

Como isto se faz sucessivamente e sem descanso, acontece que os bancos “multiplicam” sem cessar os meios de pagamento, na mesma medida em que vão criando mais dívida. Como dizia o Prémio Nobel da Economia Maurice Allais, isso significa que os bancos criam dinheiro ex nihilo, a partir do nada.

Na Europa, a proporção dos depósitos que, hoje em dia, os bancos são obrigados a manter em reserva é a de 1%, no caso de se tratar de depósitos a menos de dois anos ou que se possam levantar sem pré-aviso, e de 0% nos restantes. Isto implica que, se supusermos que os clientes não retêm dinheiro nas suas mãos (o que hoje em dia sucede quase sempre, graças aos cartões), um banco pode criar do nada 100 euros sempre que um cliente deposite nesse banco 1 euro, a prazo de menos de dois anos, e tanto quanto quiser, nos restantes casos.
Este é o negócio que dá lucros à banca: criar dinheiro do nada, gerando dívida sem cessar.

Logicamente, os bancos não deixaram nunca de aproveitar essa oportunidade e dedicaram-se a impor as condições que obrigam as empresas, famílias ou governos a endividarem-se continuamente, fomentando, por exemplo, a compra da habitação em vez do arrendamento, cortando salários, permitindo créditos hipotecários acima do valor da casa, subindo artificialmente o preço da habitação, desagravando fiscalmente os juros de maneira a ser mais rentável endividar-se do que autofinanciar-se, etc.

Esta, e não outra, é a causa de que a dívida cresça constantemente. E também de que os bancos, volta e meia, tenham crises, já que criar dívida desta forma faz com que o valor dos seus créditos se afaste constantemente do  dos seus depósitos e do seu capital em geral.

Em Junho passado, foram publicados os últimos dados anuais que permitem comprovar a relação entre o capital e os activos dos 50 maiores bancos do mundo. Embora não seja exatamente entre depósitos e créditos, a relação reflecte perfeitamente como tem crescido o negócio bancário e a razão da sua permanente instabilidade.

Esses 50 megabancos têm, no total, um capital de 772.357 milhões de dólares, enquanto os seus activos têm um valor 87,6 vezes maior (67,64 biliões de dólares). Mas, há casos verdadeiramente impressionantes. O recorde pertence ao Wells Fargo Bank dos Estados Unidos, que tem ativos no valor de 2.646,6 vezes maior do que o seu capital. LesiguenCitibank, com uma relação de 1.793,3 para um e o ING, que tem 1.550,3 dólares em ativos para cada dólar de capital. No ranking encontram-se o Banco de Santander, no 15º lugar e com uma relação de 196,9 dólares em activos por cada dólar de capital, e o BBVA, em 35º lugar e com uma relação muito mais baixa, de 20,5 para um (a lista completa pode ver-se no Bankers Almanac).
O sistema de reserva fracionária dá origem a estes monstros financeiros que assentam em nada, sendo materialmente impossível que se mantenham em pé, sem caírem em algum momento. A história demonstrou-o dúzias de vezes.

Mas embora o sistema seja perigosíssimo, a banca adquiriu, graças a ele, um poder político imenso, diabólico, que se estende a todos os resquícios da sociedade e que lhe permite obrigar a que sejam os cidadãos a arcar com os custos multimilionários que gera, cada vez que cai.

Vivemos, pois, num sistema que permite que a utilização de um elemento essencial para criar riqueza, emprego e satisfação humana como é o dinheiro, que está para a economia como o sangue está para o corpo humano, dependa exclusivamente da vontade de um grupo social privilegiado. E que, além disso, o utiliza da forma mais esbanjadora e onerosa, criando uma dívida crescente que asfixia a vida económica.

Veja-se como se vir, não há outra alternativa senão acabar com o sistema de reserva fraccionária e considerar o crédito como um serviço público essencial, obrigando a banca, seja ela privada ou pública, a governá-lo, inapelavelmente, à luz desse princípio. Isto não só permitiria evitar o inferno criado por cada crise, que o sistema bancário actual recorrentemente provoca, mas também utilizar o dinheiro, que é um bem comum, para financiar convenientemente empresas e consumidores, e que os juros (que poderiam ser mínimos ou utilizados apenas como instrumento de estabilização) revertessem para o Estado, aliviando uma parte imensa da actual carga fiscal.


 

[*] Catedrático na Universidade de Sevilha, no Departamento de Teoria Económica e Economia Política.